Brasil e Paraguai elevam custos em Itaipu a US$ 1 bi às vésperas do fim da dívida

Primeira negociação em 13 anos sinaliza que consumidor brasileiro pode ser penalizado na revisão do acordo binacional

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Brasília

O governo comemorou nas últimas semanas a primeira redução em 13 anos na tarifa de energia da usina de Itaipu, mas o setor não vê tantos motivos para celebrar. A avaliação entre especialistas da área é que o Brasil perdeu uma importante queda de braço com o Paraguai.

O governo de Jair Bolsonaro (PL) concordou em aumentar o custo de exploração de energia da usina ao inédito valor de US$ 1 bilhão (R$ 5 bilhões) no ano de 2022, o que eleva a tarifa paga por brasileiros em quase US$ 300 milhões (R$ 1,5 bilhão).

A decisão, que atendeu a gestão do paraguaio Mario Abdo Benítez, foi interpretada como prenúncio de fragilidade brasileira em uma negociação decisiva que se aproxima. A partir de 2023, ano em que o tratado bilateral completa 50 anos, a dívida para a construção da usina será quitada, abrindo espaço para a revisão do Anexo C —justamente a parte do tratado que rege a gestão financeira.

Hidrelétrica de Itaipu; recursos da geração de energia bancam um crescente número de obras - Caio Coronel - 24.fev.17/Divulgação/Itaipu

A tarifa de Itaipu deve ser negociada anualmente. No entanto, estava congelada desde 2009. Ainda no final do ano passado, o Brasil não quis o congelamento para 2022. Seria ano de eleição, e Bolsonaro tinha a meta de reduzir a tarifa de energia. A conta de luz já pesava no bolso dos brasileiros, em um momento de queda na renda, e elevava a inflação.

Havia uma janela de oportunidade para o alívio. O tratado que rege a usina estabelece que Itaipu não pode ter lucro, ou seja, dinheiro sobrando. A tarifa equivale às despesas para manter a usina, tecnicamente chamadas de Cuse (Custos de Serviço de Eletricidade). Eles são a soma de três grandes grupos.

Há o pagamento de royalties pelo uso da água, que é atrelado à produção de energia e fica na casa de US$ 400 milhões por ano. Também é relevante o chamado custo de exploração, que na prática agrupa as despesas para operação e manutenção da usina, e que, na média, ficou em US$ 763 milhões (R$ 3,9 bilhões) nos últimos dez anos.

O custo mais pesado sempre foi a dívida contraída para a construção da usina, que vinha representando pouco mais de 60% do total. Demandava desembolsos anuais de US$ 2 bilhões (R$ 10,4 bilhões).

O pagamento da dívida, porém, está na reta final. Neste ano caiu para US$ 1,4 bilhão (R$ 7,3 bilhões), reduzindo o custo da usina em US$ 600 milhões (R$ 3 bilhões). No ano que vem, ela será quitada, com o pagamento de US$ 300 milhões. O tratado estabelece que, encerrada a dívida, será possível a completa revisão do Anexo C.

Para reivindicar a redução da tarifa em 2022, o Brasil considerou a queda de US$ 600 milhões na dívida, o valor normal dos royalties e um custo de exploração de US$ 750 milhões, dentro da média. Transferia 100% do desconto da redução da dívida para o consumidor de energia.

Nesse cenário, o Brasil estimou uma tarifa para Itaipu de US$ 18,97 por kW (kilowatt) (R$ 98,56 por kW), uma redução de 16%. O valor, em caráter provisório, foi adotado em janeiro com aval da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).

O Paraguai, no entanto, não concordou. Estimou que o custo de exploração subiria para US$ 1,3 bilhão (R$ 6,6 bilhões), o que deixaria o custo total praticamente igual. Assim, defendeu que a tarifa tinha de continuar congelada em US$ 22,60 (R$ 117,42).

As negociações se arrastaram por oito meses e, no fim, o Brasil aceitou metade do que queria. Foi acordada uma redução de 8%, e a tarifa anual passou para US$ 20,75 (R$ 107, 80).

Assim, o custo de exploração negociado subiu para US$ 1 bilhão, um valor inédito. Para o consumidor, representa uma adicional de quase US$ 300 milhões na tarifa de Itaipu, às vésperas da quitação da dívida. Em resposta à Folha sobre qual seriam os gastos extras que justificavam o aumento, a assessoria de imprensa de Itaipu afirmou que "as despesas de exploração para 2022 foram resultado de acordo entre os governos do Brasil e do Paraguai".

O MME (Ministério de Minas e Energia), no entanto, já anunciou que o Brasil permanecerá neste ano com a tarifa de US$ 18,97 aprovada pela Aneel até o fim do ano —sendo a diferença para os US$ 20,75 subsidiada com a conta de comercialização de energia de Itaipu, segundo a binacional.

A tarifa de 2023 é uma incógnita. O aumento dos custos já está incorporado à tarifa e será preciso esperar para ver como avançam as negociações sobre o valor da tarifa no mesmo ano em que se pode negociar o Anexo C.

O governo brasileiro considera ter alcançado um bom meio-termo. "É a primeira redução em mais de dez anos. Eu acho um bom começo", disse à Folha o ministro Adolfo Sachsida (MME), que também integra o conselho de administração de Itaipu.

O próprio presidente Bolsonaro fez postagem comemorando a queda da tarifa. A mensagem incluiu uma foto apertando a mão do presidente paraguaio, a quem o chefe do Planalto gosta de chamar pelo apelido, Marito.

Os críticos ao resultado, no entanto, questionam o contorcionismo contábil e a falta de dados técnicos para justificar a alta dos custos pleiteada pelo Paraguai e aceita pelo Brasil. Cartas enviadas à Aneel sobre o tema estão em sigilo.

A conclusão no setor é que o consumidor de energia brasileiro foi penalizado no momento em que teria direito a reduções na conta de luz proporcionais à queda da dívida. O Paraguai tem direito à metade da produção. No entanto, consome uma fração, e vende todo o restante ao Brasil.

"Os consumidores brasileiros pagam por praticamente 90% da energia de Itaipu, ou seja, pagaram o financiamento da usina, então, merecem um relevante abatimento na conta de luz à medida que a dívida da construção acaba", diz Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia. Barata já trabalhou em Itaipu.

"Tarifas de energia seguem uma lógica técnicoeconômica, mas a tarifa de Itaipu agora parece ser política", afirma.

USINA PAGA OBRAS

Há uma razão adicional para o setor de energia questionar a despesa bilionária.

Em 2005, o uso de um dispositivo chamado Nota Reversal ampliou a missão de Itaipu, de geradora de energia para também promotora do desenvolvimento social, econômico e ambiental em sua área de influência. Do lado de cá da fronteira, o beneficiado é o Paraná. Do outro lado, praticamente o país todo.

Os principais instrumentos para a promoção desse desenvolvimento são obras, como pontes, estradas e pista de aeroporto. Os gastos são contabilizados como custos de exploração, justamente na conta que se tornou bilionária neste ano.

Recentemente, os governos dos dois países ampliaram o volume dessas obras, cujos desembolsos são sempre equivalentes. Cada dólar aplicado na margem esquerda, o Brasil, precisa ser compensado por outro dólar na margem direita, o Paraguai, e vice-versa.

Em dezembro de 2018, no final do mandato, Michel Temer (MDB) e o recém-empossado Benítez assinaram o acordo para construção de duas novas pontes entre os países, bancadas com recursos de Itaipu, no valor de R$ 1 bilhão.

Bolsonaro ampliou o pacote em novembro de 2020. Em plena pandemia da Covid-19, ele foi ao Paraná para anunciar 31 empreendimentos, que somavam o investimento de R$ 1,4 bilhão com dinheiro de Itaipu. Reportagem publicada à época pela Folha detalhou que a lista incluía obras em estradas, escolas militares e até instalação de vitrais em uma catedral.

"Com essas obras, brasileiros e paraguaios se juntaram para saquear e inflar o custo de Itaipu, por conseguinte a tarifa, em detrimento do consumidor brasileiro", diz José Luiz Alquéres, conselheiro do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais), que presidiu a Eletrobras e foi membro do conselho de administração de Itaipu.

Em nota à reportagem, a assessoria de Itaipu afirmou que os recursos são "aplicados em obras estruturantes, que deixam legado à sociedade, atendendo à missão institucional da empresa."

O fato é que todo esse contexto começa a frustrar a expectativa de que haveria um choque de energia barata com Itaipu ao final do pagamento da dívida.

"Quando qualquer usina termina de pagar a sua dívida, ela se transforma numa máquina de excedente financeiro, pois os custos remanescentes costumam ser baixos", diz Altino Ventura Filho, que comandou a usina por cinco anos e também presidiu a Eletrobras.

"Parte desse excedente está indo para obras, tivemos essa redução na tarifa, mas vamos precisar discutir se queremos continuar usando esse dinheiro para financiar a construção de mercadinhos e aduanas, asfaltar rodovias e erguer pontes, ou se vamos ser mais ambiciosos."

A Abraceel (Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia) já quer iniciar o debate. A entidade vai defender junto aos candidatos à Presidência que a revisão do Anexo C do tratado permita à Itaipu vender a sua energia no mercado livre e atuar de maneira mais técnica.

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