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Jerson Kelman

Saneamento: sem tapinha nas costas

Revisar marco legal neste momento seria um equívoco

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Jerson Kelman

Foi presidente da Sabesp de 2015 a 2018, diretor-geral da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) de 2005 a 2008 e presidente da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento) de 2001 a 2004).

A ausência de regras consistentes e transparentes para o cálculo tarifário, bem como para o monitoramento da cobertura e qualidade do serviço de saneamento, explica o atraso do saneamento no Brasil. Por isso o novo marco legal do setor, de 2020, atribuiu à ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento) a responsabilidade de emitir normas de referência para sua regulação, a ser exercida por agências reguladoras estaduais e municipais. Trata-se de providência para dotar o setor de segurança jurídica, requisito essencial para a atração de capital privado e melhor funcionamento das empresas estatais. Mas a participação do capital privado no saneamento é mesmo necessária?

Quem vive num bairro bem urbanizado, com fornecimento regular de água e coleta e tratamento de esgotos, talvez tenha essa dúvida e, eventualmente, argumente contra a "mercantilização da água". Afinal, não é verdade que em alguns países desenvolvidos ocorre atualmente o contrário? Isto é, a reestatização das empresas de saneamento? Por que iríamos na rota oposta, de abrir as portas para a iniciativa privada?

Estação de tratamento de água da Cedae, no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli - 24.nov.2022/Folhapress

Porém, quem não se conforma com crianças pisando em esgoto que corre a céu aberto nas comunidades carentes talvez pense o contrário. Se até agora o poder público não foi capaz de atender a essas populações, por que o faria agora, quando a escassez de recursos fiscais é ainda mais aguda? Por que deveríamos imitar alguns poucos países desenvolvidos, há décadas universalizados, se metade de nossa população ainda não tem acesso a coleta e tratamento de esgotos?

Essa discussão parecia ultrapassada, mas voltou à baila por conta de algumas iniciativas no primeiro dia do governo Lula 3. A MP (medida provisória) 1.154/2023 vincula a ANA ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e muda o nome da agência, eliminando a palavra "saneamento". Nenhum problema com a mudança de Ministério. Porém, a retirada da palavra "saneamento" talvez vise a restabelecer a situação existente antes de 2020, quando a ANA se ocupava apenas da gestão dos recursos hídricos (rios e lagos). Como que para confirmar essa suspeita, o Decreto 11.333/2023, também de 1° de janeiro, atribui ao Ministério das Cidades a responsabilidade de instituir as tais "normas de referência". Por outro lado, a MP não eliminou o artigo 25-A da Lei 11.445/2007, que atribui à ANA essa mesma responsabilidade. Ou seja, o citado decreto é ilegal e precisa ser corrigido.

Aparentemente, a contradição entre medida provisória e decreto tem origem numa articulação política ocorrida durante a transição, cujo objetivo era transferir a atribuição hoje da ANA para o Ministério das Cidades. Há indícios de que a proposta não foi aceita. Tomara que seja verdade! Se, ao contrário, a articulação tivesse sido bem-sucedida, o governo começaria cometendo um lamentável equívoco.

Não é sensato atribuir ao governo de plantão, sujeito às instabilidades conjunturais da política e da governabilidade, a responsabilidade de regular direta ou indiretamente serviços públicos concedidos por meio de contratos de longuíssimo prazo que demandam vultosos investimentos. Algumas decisões podem envolver o próprio governo como polo de alguma disputa. Por isso as agências são entidades de Estado e não de governo. Como os tribunais.

A ANA já dispõe de um corpo técnico altamente qualificado, admitido na instituição por meio de disputados concursos públicos. Pode ficar ainda melhor se o governo Lula a reforçar com profissionais experientes na área de regulação econômica.

Há poucos dias, o presidente Lula declarou que "um governo não precisa de tapinha nas costas. Precisa ser cobrado todos os dias, para aprimorarmos nossa capacidade de trabalho". Pois bem, os primeiros sinais do marco de saneamento de 2020 são alvissareiros. Pode ser que daqui a alguns anos, depois de testado, seja necessário revisar algumas regras. Porém, fazê-lo agora seria um equívoco. Ao contrário, o governo deveria incentivar a participação da iniciativa privada no setor para criar empregos e diminuir a desigualdade social. Foi o que o governo Lula 1 fez no setor elétrico, resultando na universalização de acesso ao serviço de eletricidade.

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