Inovação no combate à violência contra a mulher é negligenciada, diz ativista israelense

Lili Ben Ami fundou ONG que fomenta tecnologia na área

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São Paulo

"Esta é minha irmã", diz a ativista israelense Lili Ben Ami enquanto mostra, por chamada de vídeo, um álbum com fotos de Michal Sela. "Ela amava a sua vida. Era uma mulher forte, ninguém lhe dizia o que fazer."

A assistente social foi assassinada pelo marido em outubro de 2019, aos 32 anos. O crime aconteceu na sua casa em Moza, perto de Jerusalém. O agressor a estrangulou e esfaqueou repetidamente e saiu pela vizinhança 17 horas depois do ataque pedindo ajuda, com a filha de oito meses nos braços. Atualmente, ele cumpre pena de prisão perpétua.

A brutalidade do assassinato motivou Lili a fundar, seis meses depois, o Fórum Michal Sela, ONG que apoia iniciativas tecnológicas de combate à violência contra a mulher. A inovação nesse campo, diz ela, é negligenciada.

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Lili Ben Ami, ativista israelense contra a violência de gênero - Divulgação

"O Airbnb foi disruptivo para o turismo; o Facebook, para a comunicação. Queremos causar esse mesmo impacto no combate à violência doméstica", afirma. "A inovação salva vidas em diversos campos. O que fizemos foi pegar essas mentes e tecnologias incríveis e colocar no combate à violência contra a mulher."

A principal iniciativa da organização para promover a mudança é um evento chamado hackathon, uma maratona de programação com profissionais que tentam achar soluções para um problema —nesse caso, a violência de gênero. Até agora, três edições já foram realizadas com parceiros como Google, Meta e Microsoft.

A família ficou em choque após o assassinato. Nunca alguém próximo do casal havia visto o agressor levantar a voz para a parceira. Na época, Lili buscou especialistas para achar respostas para as suas perguntas. Por que a irmã estava em silêncio? Pelo que passava nesse casamento? A família poderia ter feito algo para evitar?

"Não houve violência física antes do assassinato. A primeira agressão foi a última", conta. "Nos meses seguintes, eu achei respostas para todas as minhas questões. Nós poderíamos ter salvado Michal. Ela morreu por nada. Seu assassinato segue padrões, não é especial", afirma.

Depois do crime, Lili descobriu que amigos homens haviam sido deletados das redes sociais de sua irmã. Quando contou a um dos investigadores, ouviu que esse fenômeno era comum em casos de feminicídio: o homem acessa o celular da parceira e desfaz seus contatos. "Ou seja, há um padrão, e você pode identificar e dar um aviso", afirma.

Foi o que desenvolveu um dos projetos na maratona de programação da ONG. A solução é um aplicativo que indica ao usuário se alguém está acessando o seu celular. Se o tipo de toque na tela foge do padrão do dono do aparelho, o dispositivo avisa. É possível saber se outra pessoa entrou no celular durante a madrugada e apagou emails, por exemplo.

O aplicativo de botão do pânico, mais uma iniciativa do evento, é para uma situação de urgência. Por meio de uma palavra de segurança, o aparelho liga para contatos predeterminados e ativa a câmera e o microfone.

Outro exemplo é um app para denunciar casos de violência sem reportar à polícia imediatamente. Quando três vítimas reportam contra o mesmo agressor, o app sugere que elas se conectem para ir à delegacia juntas.

"Depois que a minha irmã morreu, chegaram seis denúncias contra ele, mas antes não havia nenhuma. Porque quando essas mulheres conseguem se livrar do relacionamento, não querem ir à polícia, querem encerrar a história", afirma.

Esses padrões da violência de gênero, segundo Lili, são internacionais. A linguagem da vítima se repete; a do agressor, também. Grande parte dos assassinatos acontece quando a mulher tenta terminar com o agressor —caso da sua irmã. Mudanças bruscas, como uma nova casa ou o nascimento de um bebê, são pontos de crise, e há picos de agressões em feriados e datas festivas.

Os perfis de parceiros também são parecidos. Há os sabidamente violentos, que agridem e gritam com a mulher em público, por exemplo, e há os silenciosos, como o ex-parceiro de sua irmã. Todos o adoravam por seu jeito atencioso, e ele demonstrava gostar das mesmas coisas que Michal.

Em casa, porém, era controlador.

"Esse tipo quer saber a todo momento com quem a mulher fala, o que está vestindo, onde está. É como ter a KGB no seu ombro. Ele é viciado em controlar a parceira", afirma Lili. "Para muitas mulheres, é difícil falar sobre um assédio. Você se envergonha pelo que o seu corpo passou. O mesmo acontece com mulheres que têm um companheiro violento."

Até agora, mais de 400 soluções foram apresentadas nas três edições do hackathon. Ao final de cada evento, as dez principais ideias ganham uma aceleração do Google para dar continuidade aos projetos.

No final de novembro, Lili veio ao Brasil e se reuniu com empresas de tecnologia no país, como Meta, Google, Uber e Microsoft. Ela também conheceu startups brasileiras e falou sobre a sua história no Senado.

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Lili Ben Ami, ativista israelense contra a violência de gênero, fala no Senado - Divulgação

"A violência doméstica e o feminicídio são os únicos campos com situação de vida ou morte que não têm prevenção", afirmou no plenário da Casa. "Por que só nesse caso as ferramentas são as mesmas há tanto tempo?"

Na entrevista ao jornal, ela disse ter ficado impressionada com a gestão de dados de segurança no Brasil, que consegue identificar o número de feminicídios por região. E disse que o objetivo do seu projeto é zerar esse tipo de crime.

"Michal lutou pela sua vida e morreu porque era uma mulher. Pudemos ver o seu esforço. Após o assassinato, a lâmpada da sala estava quebrada, a porta, partida em dois. Havia pele sob as suas unhas", conta. "Meu sonho é, no futuro, sentar em uma praia com a minha sobrinha e contar que um dia houve esse fenômeno chamado feminicídio, e que a sua mãe foi vítima dele. Ela lutou até o fim para sobreviver, nós continuamos a sua batalha e ganhamos."

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