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Retirada de abrigo para 'ajudar', idosa viveu em situação de escravidão por 33 anos

Patrão tinha se comprometido a registrá-la em 2014; à Justiça, ele disse que esqueceu

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São Paulo

A Justiça do Trabalho em São Paulo condenou um casal a assinar a carteira e pagar os salários de 33 anos de trabalho prestado por uma empregada doméstica que vivia em situação análoga à de escrava. Eles ainda podem recorrer.

Em depoimento à Justiça do Trabalho, a mulher disse ter sido retirada de um abrigo para pessoas em situação de rua da região central de São Paulo no fim dos anos 1980 para cuidar da casa e dos filhos do casal por um salário mínimo.

Ela disse que, apesar do combinado, nunca chegou a receber salário. Em seu primeiro mês de trabalho, já vivendo na residência do casal, em um bairro da região central da capital paulista, uma avaria na lavadora de roupas resultou em desconto do salário, afirmou.

A empregada disse à Justiça que entendia que os patrões forneciam moradia, alimentação, materiais de higiene e dava dinheiro para que ela comprasse cigarros e biscoitos. Segundo a ação, esse valor era de cerca de R$ 175 por semana.

Sua função era limpar e manter a casa arrumada, além de cozinhar, quando necessário –a casa teve outros empregados em alguns momentos, contou a mulher à Justiça.

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Decisão da Justiça do Trabalho de São Paulo determinou o pagamento de cerca de R$ 800 mil a uma mulher mantida em situação de escravidão - Catarina Pignato

Além dos salários, os patrões agora terão que pagar 13º, férias indenizadas em dobro, aviso prévio indenizado sobre 90 dias, recolhimentos do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) e multa de 40%.

A empregada, hoje com 69 anos, está em um abrigo desde o fim de julho de 2022, quando foi resgatada em uma ação da qual participaram uma procuradora do trabalho, um auditor fiscal do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), um policial federal e um integrante do NPJ (Núcleo de Proteção Jurídico Social e
Apoio Psicológico). Foi a esse último que a mulher pediu ajuda em abril do ano passado.

Desde o resgate, ela vem recebendo uma pensão no valor de um salário mínimo, pagos pelos antigos patrões.

condenação prevê indenização por danos morais de R$ 50 mil para a trabalhadora, e outros R$ 50 mil em danos coletivos para o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). Eles também deverão fazer os recolhimentos ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).

O valor total dos pagamentos foi estimado em R$ 800 mil pela juíza do trabalho substituta Maria Fernanda Zipinotti Duarte, que analisou o caso na 30ª Vara do Trabalho de São Paulo. A decisão foi publicada na terça-feira (28).

A Folha entrou em contato com o advogado dos empregadores, mas não obteve resposta até a publicação do texto.

O casal já havia sido notificado pela Gerência Regional do Trabalho e Emprego, ligada ao MTE, em 2014. Àquela época, a fiscalização considerou que a mulher era empregada doméstica da família e que estava em situação informal.

Não houve, porém, a interpretação de que se tratasse de trabalho análogo ao de escravo. Essa fiscalização terminou com um acordo no qual o dono da casa se comprometeu a registrar a empregada e regularizar seus direitos trabalhistas.

À Justiça do Trabalho de São Paulo, em audiência do processo iniciado pelo MPT após o resgate em 2022, ele disse que "esqueceu". Também afirmou, segundo a sentença, que considerava estar "tirando uma pessoa da rua para ajudar".

"Chama a atenção o fato de os réus buscarem empregados domésticos em centros de acolhida, pessoas em situação de grande vulnerabilidade social, firmando assim relação de absoluta dependência e que, em troca do labor doméstico, 'ajudavam', até mesmo fornecendo roupas e calçados, e dinheiro de pouca monta para cigarros e biscoitos (!!!).", escreveu a juíza na decisão.

Na época do acordo com o MTE, o casal prometia ainda que venderia um imóvel e que assim que o negócio fosse concluído, eles comprariam um pequeno imóvel para a empregada. Segundo a sentença de 24 de março, isso nunca aconteceu. Um imóvel que pertencia ao casal foi transferido em doação para uma neta, hoje com 14 anos, em 2019.

Para a juíza, a medida tornou "nítido o intuito de diminuir o patrimônio dos réus, eis que já plenamente ciência dos créditos devidos à assistida."

Nos 33 anos vivendo sob o teto do casal, a empregada também chegou a fazer para os dois outros tipos de trabalho, como a cobrança a clientes inadimplentes no negócio que ambos tocavam.

A patroa disse à Justiça que nunca considerou que a mulher fosse sua empregada. Ela e o marido também disseram, na ação, que a mulher é alcoólatra e que tem "certo esquecimento e um pouco de confusão mental e agressividade".

A juíza Maria Fernanda Zipinotti Duarte escreveu na decisão que considera o trabalho doméstico em condição análoga à escravidão aquele com "umas de suas faces mais cruéis". Sem salário por mais de 30 anos, escreveu a magistrada, a trabalhadora não tem plena liberdade de ir e vir.

"Não possui condições de romper a relação abusiva de exploração de seu trabalho, pois desprovida condições mínimas de subsistência longe da residência dos empregadores, sem meios para determinar os rumos de sua própria vida."

A decisão de 24 de março prevê que a trabalhadora que viveu em situação de escravidão doméstica terá direito à pensão de um salário mínimo até que a execução da sentença termine. Se todos os termos da decisão de primeira instância forem mantidos, o casal poderá abater os valores da pensão do total que devem à ex-funcionária.

Denúncias de suspeitas de trabalho análogo à escravidão ou outras violações de dignidade e cidadania podem ser feitas pelo sistema Ipê, pelo Disque 100 ou, em São Paulo, nas unidades do NPJ. Veja aqui os endereços.

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