Apps precisam de regulação para não serem novos 'navios negreiros', diz diretor da OIT

Vinícius Pinheiro defende que legislação mantenha grau de inovação das plataformas, mas sem que se reproduzam condições de trabalho do século 19

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Brasília

A regulamentação voltada aos trabalhadores de aplicativos deve levar em consideração medidas de proteção social e transparência do algoritmo para evitar reproduzir modelos de trabalho do século 19, afirma o diretor da OIT (Organização Internacional do Trabalho) no Brasil, Vinícius Pinheiro.

"É uma tecnologia incrível, cria mercado, faz o match [combinação de interesses]. Mas isso não pode acontecer em detrimento das condições de trabalho", afirma, acrescentando que plataformas especializadas em serviços domésticos, por exemplo, passaram a ser comparadas a "novos navios negreiros".

Pinheiro cita a dificuldade de identificar as lideranças de cada segmento de trabalhadores como um dos entraves à discussão sobre regulamentação de apps.

Para ele, o Estado precisa ter capacidade de supervisionar os trabalhadores de aplicativos. "Da mesma forma que empresas prestam informações com relação a seus funcionários, as plataformas também deveriam ter essa obrigação", disse à Folha.

Diretor da OIT no Brasil, Vinícius Pinheiro
Diretor da OIT no Brasil, Vinícius Pinheiro, em entrevista à Folha na sede do órgão em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

O governo brasileiro está formando um grupo para estudar a questão da regulação dos trabalhadores por aplicativo. Vocês participam de alguma forma?

Eu estive com o ministro [Luiz Marinho]. Esse grupo vai ter composição de representantes dos aplicativos, do privado, de governo. Primeiro, é importante reconhecer o papel que os aplicativos tiveram durante a pandemia e têm tido na geração de emprego.

São três elementos importantes. Primeiro a questão do status do emprego. Qual a relação de emprego? Em geral, a plataforma é uma intermediadora de emprego. Então você tem um algoritmo que faz o match entre oferta e demanda. Mas, em alguns casos, se essa é a fonte principal do emprego e o trabalhador trabalha uma quantidade de horas a ser definida, então você tem uma relação de emprego que é profissional. Não podemos chamá-lo de empreendedor ou de sócio se está caracterizada essa relação de acordo com a legislação.

Por isso, alguns países passaram a considerar o trabalhador que oferece os serviços nessas plataformas como empregado. Essa é a discussão que tem que acontecer no Brasil. Quais são os critérios que definem que o trabalhador que está prestando serviço para uma plataforma vai ser empregado? Esses critérios podem passar pela quantidade de horas de trabalho, se esse é o rendimento principal ou não.

O que mais tem que ser discutido?

Outro ponto diz respeito à transparência do algoritmo. Quais os critérios para definir a remuneração? Em algumas plataformas o empregado nunca sabe quanto vai ganhar no final da corrida. Essa imprevisibilidade de remuneração pode ser inconsistente com a relação de trabalho.

E, por fim, a capacidade de supervisionar o aplicativo. Da mesma forma que empresas prestam informações com relação a seus funcionários, as plataformas também deveriam ter obrigação de prestar essa informação.

Essa massa de trabalhadores ali é desconhecida. Se for necessário verificar tempo de serviço, esses dados são inexistentes. Mas o fundo da questão é: como manter esse poder de geração de oportunidade, de emprego, de inovação, mas, ao mesmo tempo, garantir os direitos dos trabalhadores?

Não é possível que alguém que trabalhe 48 horas para uma plataforma não tenha acesso à proteção social, não tenha tempo para aposentadoria, não tenha acesso a um seguro-acidente.

Algum país já encontrou um modelo que faça sentido para a realidade brasileira?

Em muitos casos, quem tem decidido são tribunais, não legisladores. Mas você tem vários casos interessantes. Por exemplo, na Colômbia eles estão avançando em relação a horas. A hora de trabalho define se o trabalhador deve ser considerado empregado ou não.

É um caso parecido com o da empregada doméstica. Se você vem duas vezes por semana, se você perfaz 16 horas, então você é diarista e pode ser MEI [microempreendedor individual] ou contribuinte autônoma. Se você faz mais que 16 horas, tem que ter carteira assinada.

São experimentos. Em alguns casos, se deu também muito poder às negociações coletivas. Há plataformas que passaram a negociar com seus provedores qual vai ser a taxa de administração, como ela vai variar.

Um problema que a gente tem no Brasil é a dificuldade de identificar as lideranças. Em países europeus, as lideranças eram mais claras, se configuraram sindicatos de provedores de aplicativos e esses sindicatos conseguiram garantir condições básicas, salário mínimo, um mínimo de viagens garantido, uma margem que a plataforma não pode tirar do salário, acesso a plano de saúde.

Eu creio que seja possível avançar numa regulação que, ao mesmo tempo, mantenha o grau de inovação e a capacidade de facilitação de intermediação da plataforma, mas que melhore as condições de trabalho dos provedores.

Quais os excessos identificados nas plataformas?

Existem muitos tipos de plataforma. As de entrega de alimentos, que intermedeiam serviços, que também podem ser abusivos. Algo que tem ganhado muita adesão são as plataformas de contratação de trabalhadores domésticos.

Em vez de você contratar uma trabalhadora, você contrata a plataforma e eles mandam a cada dia uma pessoa diferente. As pessoas são filiadas à plataforma como MEIs, como trabalhadores autônomos.

Representantes da Fenatrad [Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas] já disseram: são os novos navios negreiros. Primeiro você tem que estar à disposição. Você acorda 6h da manhã, tem que estar com seu telefone ligado e você não sabe se vai ao trabalho ou não. E, quando você vai, por mais que ganhe o salário mínimo, tem uma dedução, a plataforma fica com uma parte, e ela não explica esse dado.

Lembra condições do século 19. Em Nova York, na Times Square, era isso. Iam uns trabalhadores para lá, ficavam esperando. 'Ah, vai chegar tal navio'. 'Ah, agora precisa de um, dois, três, quatro'. Pegava a ficha, quem chegava primeiro ia.

É a mesma coisa agora. Você tem um tipo de organização do trabalho que não tem o mínimo de previsibilidade sobre se você vai trabalhar ou não, se você vai ter uma renda no final do mês que vai permitir pagar uma prestação de casa, ter acesso a crédito.

É uma tecnologia incrível, cria mercado, faz o match. Mas isso não pode acontecer em detrimento das condições de trabalho. Não pode ter essa tecnologia de ponta, mas reproduzindo condições de trabalho do século 19.

Todas essas questões vão estar na mesa. É importante evoluir em direção a modelos mais justos, que ao mesmo tempo conduzam ao aumento dos negócios, porque ninguém está falando em eliminar plataforma.

Nas últimas eleições o país vivenciou situações de assédio eleitoral. Como evitar que isso se repita?

O assédio eleitoral faz parte da categoria maior que é o assédio moral. Você pode assediar um trabalhador seja para ter para induzi-lo a uma opção eleitoral ou então para desmoralizá-lo.

Se o Brasil tivesse o certificado, a convenção 190 antes, poderia ser que essas ações tivessem sido melhor contidas, porque aí sim teríamos instrumentos legais e normativos para esse tipo de ação. Em relação ao assédio, o TST [Tribunal Superior do Trabalho] registrou no ano passado 22 mil casos de assédio moral, e isso inclui o assédio eleitoral. De assédio sexual, foram 4.500 [casos].

Quando chega o processo quer dizer que várias barreiras já foram ultrapassadas. A pessoa já reclamou, não teve resposta, já entrou no conflito, talvez tenha sido demitida. Aí entrou com o processo. Se você pegar o número de assédio que realmente acontece deve ser dez vezes maior.

E é importante dizer sobre esse tema que não é só o imperativo moral e ético, é uma questão também de produtividade. O pior que pode acontecer numa equipe é você ter uma pessoa que está sendo assediada. Isso tem um impacto sobre todo o grupo, sobre o sistema de saúde, sobre a Previdência, porque a pessoa sai de licença, vai receber benefício do INSS por um tempo. Tem um impacto na saúde mental.


Vinícius Pinheiro, 51

Economista e mestre em Ciências Políticas pela UNB, foi vice-ministro da Previdência Social e secretário da Previdência Social de 1998 a 2002. Atuou como especialista principal em Previdência na OCDE e foi consultor de Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento. Entre 2020 e 2022, ocupou o cargo de diretor regional da OIT para a região da América Latina e Caribe.

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