Trabalho semelhante ao escravo deve ter forte alta com crise e impunidade sob Bolsonaro, diz chefe da OIT

Diretor no Brasil diz que caso de vinícolas no Sul se repete em lavouras de cana, café, soja e carvoarias; ele defende políticas de reinserção do trabalhador no mercado

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Brasília

O caso dos trabalhadores em situação análoga à escravidão resgatados de vinícolas no Rio Grande do Sul pode ser só a ponta do iceberg de um problema agravado pelo aumento da pobreza, pela sensação de impunidade e pela falta de fiscalização no país.

A avaliação é do economista Vinícius Pinheiro, que, em janeiro deste ano, assumiu o comando da OIT (Organização Internacional do Trabalho) no Brasil.

Em entrevista à Folha, ele destaca a necessidade de programas para reintegrar os trabalhadores retirados desse contexto degradante, para que não se vejam forçados a voltar a esse tipo de ocupação. Segundo ele, há um represamento nas denúncias, na fiscalização e no resgate de trabalhadores.

"No decorrer do ano, você pode ter a surpresa de que as redes de recrutamento e de coerção, de exploração dos trabalhadores são muito mais arraigadas do que nós temos ideia", afirmou.

Diretor da OIT no Brasil, Vinícius Pinheiro, em entrevista à Folha
Diretor da OIT no Brasil, Vinícius Pinheiro, em entrevista à Folha na sede da entidade em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

Recentemente, tivemos casos de trabalho análogo à escravidão em grandes vinícolas. Como o Brasil pode avançar nesse combate?

Foram 918 pessoas resgatadas até agora, nos primeiros três meses do ano [até 20 de março], no que é o maior patamar dos últimos 15 anos. A vinícola foi uma parte expressiva, mas há em várias outras áreas. No café, nas carvoarias, na exploração da soja, na cana-de-açúcar.

É importante também entender as causas, como a pobreza, que aumentou. Então há uma causa estrutural desse aumento de pessoas resgatadas. Aumentou a condição de vulnerabilidade.

Em segundo lugar, houve uma sensação de impunidade. Isso foi algo que cresceu em especial nos últimos anos. E, quando havia algum resgate, a penalização chegava somente no atravessador, não no responsável final. Isso gerava também uma sensação de impunidade na parte penal. E, por outro lado, você tem também o enfraquecimento da fiscalização. O último concurso para fiscal do trabalho foi em 2003. Há 1.500 vagas não preenchidas, o que corresponde a 50% do contingente.

Um terceiro elemento tem a ver com um aumento da conscientização sobre o tema. Quanto mais se conhece o que é a condição de trabalho análogo à escravidão, maior a consciência pública e maior o impacto sobre as denúncias.

O que pode ser feito?

Por um lado está a parte da corresponsabilidade das empresas. As empresas têm que ter uma conduta empresarial responsável em toda a cadeia produtiva. Primeiro há uma responsabilidade em relação aos direitos humanos, direitos de trabalho. Mas há também uma responsabilidade sobre o produto, se não vai sofrer nenhum dano em termo de imagem. Hoje, o que as vinícolas aprenderam é que não tem preço um impacto como esse sobre o dano de imagem do produto.

Segundo, um fortalecimento da fiscalização. Algo que pode também facilitar é que o Brasil ratifique a convenção 29 da OIT [de 2014]. É uma atualização da legislação relacionada ao trabalho escravo, que define claramente em relação à jurisprudência internacional o que é o trabalho análogo à escravidão —que inclui aquele trabalho que é coagido por intermédio de dívidas, que tem a ver com condições penosas, com excesso de horas trabalhadas.

De certa forma a legislação do Brasil já se adequa a esse protocolo, mas a ratificação por parte do Brasil desse protocolo seria um gesto perante a comunidade internacional de que o Brasil está comprometido, sim, com a erradicação do trabalho escravo.

A situação se agravou nos últimos anos, no último governo?

Foram criadas condições mais permissivas à exploração do trabalho, justamente pelo aumento da miséria, da extrema pobreza, e mas também pela sensação de impunidade e por um enfraquecimento da capacidade do Estado.

Se até março já foram 918 resgatados, e caso se mantenha essa incidência, até o final do ano serão 4.000. Seria o maior número em quase 20 anos de trabalhadores resgatados. E isso [exploração] só vai mudar quando houver um aumento da fiscalização, uma responsabilização maior das empresas sobre suas cadeias produtivas e uma maior efetividade dos meios de denúncia.

Uma face do trabalho escravo que ainda é pouco conhecida é o doméstico. Volta e meia se sabe de alguma trabalhadora que foi resgatada depois de 40 anos. É um trabalho que começa com trabalho infantil em muitos casos. E muitas não se dão conta de que isso é trabalho análogo à escravidão.

Essa caracterização só é feita a partir da conscientização. À medida que aumenta a educação, que aumenta a informação ao público sobre isso, também aumentam as denúncias e os resgates.

Mas, além disso, é preciso saber: depois que se resgata, o que vai acontecer? É preciso reintegração dos trabalhadores resgatados ao mercado trabalho e políticas sociais são fundamentais.

Criar um programa específico para isso?

É necessária a inscrição num programa de transferência de renda, como Bolsa Família, a integração do resgatado ao mercado de trabalho. Nessa questão da inclusão produtiva o apoio não é só a ele, como a sua família.

Temos o caso de um trabalhador que foi resgatado três vezes. Ele era resgatado, mas, diante da situação de pobreza e com pessoas cobrando dívidas, ele voltava. Por não ter mecanismos de reinserção no mercado de trabalho, ele caía de novo na armadilha do trabalho escravo.

E é necessário, sobretudo, o desmonte das organizações criminosas que estejam trabalhando nisso, que fazem o recrutamento desses trabalhadores.

A Conatrae (Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo) foi desmobilizada?

A Conatrae é o principal órgão que delibera sobre as políticas a respeito desse tema, envolve todas as autoridades competentes: o Ministério do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal, em alguns casos a Polícia Civil, a Defensoria Pública. A Conatrae estava desmobilizada. Não chegou a ser totalmente desmontada, como foi a Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo), que é uma comissão que fala do trabalho infantil.

A Conaete foi desestruturada. Assim como o Ministério do Trabalho. O Ministério do Trabalho virou uma subsecretaria. A recriação desses espaços permite que as políticas públicas avancem nessa direção. É claro que isso vai significar também um aumento maior de resgates, porque há um represamento.

Há indícios de que essas práticas ali no Rio Grande do Sul não são práticas do ano passado, são práticas recorrentes. De repente isso é só a ponta do iceberg que está vindo à tona e que, no decorrer do ano, você pode ter a surpresa de que as redes de recrutamento e de coerção, de exploração dos trabalhadores, são muito mais arraigadas do que temos ideia.

Também houve corte de orçamento para fiscalização. Acredita que o atual governo vá rever isso?

Pelo menos as declarações em termos de políticas, de priorização do tema, são todas afirmativas. E também as ações, declarações públicas das autoridades competentes, do Ministério Público do Trabalho, têm sido todas no sentido de que vai ser [prioridade], mas é claro que ainda precisamos ver.

Se não tem fiscalização, não tem casos de resgate. Com as pessoas denunciando, aí você tem que tomar atitude. Antes havia o Disque 100, do Ministério da Justiça, mas tinha um general sentado lá. Imagina quantas denúncias chegaram lá e ficaram sem seguimento. Aí foi criado um sistema, paralelo ao Disque 100, que começou a desafogar as denúncias.

Existe alguma iniciativa para garantir a corresponsabilização das empresas?

Não existe. Você tem códigos de conduta. Por exemplo, o Pacto Global da ONU estabelece que as empresas têm que ter corresponsabilidade na cadeia produtiva. Tem que estar vigilante e ter mecanismos de monitoramento e de devida diligência. Mas, infelizmente, não é algo que ainda está muito instituído na cultura organizacional das empresas no Brasil.

Agora, um grande impulso à mudança está relacionado em especial às empresas exportadoras. Alguns mercados, por exemplo a Alemanha, a França e a própria União Europeia, estão começando a exigir que as empresas tenham mecanismos instituídos.

Na Alemanha, se é uma empresa com mais de 5.000 funcionários e houver uma denúncia, eles podem fechar as portas ou estabelecer sanções. A União Europeia está discutindo uma política sobre isso e, se a diretiva for adotada, o acesso ao mercado europeu vai ser restringido a essa empresa, ela não vai conseguir exportar. Já é uma dimensão muito mais impactante.

Se você tem problemas fitossanitários, problemas de doença, você não pode exportar. Nesse caso é como se fosse também uma doença na cadeia produtiva dessas empresas. Poderiam ser impostas sanções à exportação de uma empresa específica, de um CNPJ, porque foi encontrado um problema. O sistema internacional está caminhando para isso.

Sobre a extinção da Conaete, foi medido o impacto no aumento do trabalho infantil?

Há indícios de aumento do trabalho infantil. Foi a combinação de duas coisas: a crise econômica e a Covid. Sempre que aumenta a crise aumenta o trabalho infantil, porque as crianças são chamadas a complementar a renda. E por outro lado houve fechamento das escolas.

Isso significou deserção escolar em alguns casos e aumento do trabalho infantil. Você está comprometendo uma geração. São pessoas que, depois que saem da escola, resgatá-las do trabalho infantil é muito oneroso. Temos esse desafio de trazer de volta essas crianças para escola antes que elas sejam perdidas.


Vinícius Pinheiro, 51

Economista e mestre em Ciências Políticas pela UNB, Pinheiro foi vice-ministro da Previdência Social e secretário da Previdência Social de 1998 a 2002. Atuou como especialista principal em Previdência na OCDE e foi consultor do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Entre 2020 e 2022, ocupou o cargo de diretor regional da OIT para a região da América Latina e Caribe.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.