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Governo intervém, dólar cede, mas argentino continua sem poupança

Maior inflação dos últimos 30 anos faz pesos derreterem enquanto solução se arrasta até as eleições

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Buenos Aires

"As pessoas vivem dia a dia", diz o técnico Javier Sosa, 32, explicando por que não consegue aumentar o valor do conserto do ar-condicionado toda semana, como fazem os supermercados. "Senão os clientes não querem pagar e eu perco trabalho", lamenta.

O dinheiro do argentino, que já derretia, passou a se desvalorizar ainda mais nas últimas semanas. A inflação de março chegou ao maior nível acumulado dos últimos 30 anos e, logo depois da notícia, o dólar paralelo "blue", que dita o dia a dia do país, entrou numa escalada ininterrupta por 15 dias.

Quantidade de pesos argentinos equivalentes a uma única nota de US$ 100 em março; agora, o preço já subiu - Fernando Canzian/Folhapress

Só cedeu nesta quinta-feira (28), depois de uma série de intervenções do governo do peronista Alberto Fernández e do Banco Central, que não é independente como no Brasil. Ainda assim, os resultados foram emergenciais, e os nossos vizinhos continuam sem poder poupar.

Uma solução definitiva se arrasta até as eleições presidenciais, em outubro. "O governo conseguiu conter o pânico, mas não existe um plano de estabilização consistente que tente resolver os problemas", diz o economista Matías Surt, diretor da consultoria Invecq.

A disparada na curva do câmbio começou no dia 11, em meio a rumores da saída do ministro da Economia, Sergio Massa. A explicação foi usada pelo governo, junto à seca histórica do país, para justificar parte da corrida cambial, porém foi vista com ceticismo pelo mercado.

No dia 20, o BC tentou pela primeira vez aumentar a taxa básica de juros de 78% para 81% anuais, para encorajar os argentinos a pouparem em pesos, mas não adiantou. O problema cresceu a ponto de pressionar o presidente Fernández a desistir da reeleição, já considerada improvável pela crise econômica.

Ainda assim, a moeda não cedeu. Continuou sua trajetória crescente até quase encostar na marca de 500 pesos na terça (25), enquanto os jornais davam destaque à cotação minuto a minuto e uma repórter aparecia fazendo um "ritual" na televisão em tom de ironia para ver se um milagre acontecia.

No Twitter, o presidente culpou a direita argentina. "Primeiro instalam boatos pela manhã, depois operam ao longo do dia e quando termina a tarde retiram sua lucratividade do mercado de câmbio e prejudicam a poupança de argentinos e argentinas", escreveu.

O clima de pânico fez o ministro Sergio Massa, que ainda mantém sua pré-candidatura à Presidência, tomar três principais medidas. Primeiro, interveio no mercado de câmbios vendendo, além de bônus, dólares de suas reservas.

A ideia era jogar a moeda estrangeira no mercado financeiro para baixar seu valor. Para isso, teve que avisar ao FMI (Fundo Monetário Internacional), porque o órgão não permite a jogada. A Argentina tomou emprestados US$ 45 bilhões do fundo em 2018 e tenta negociar o prazo de pagamento da dívida.

A estratégia, porém, esvazia ainda mais as reservas de dólares do governo, já prejudicadas pela seca, que reduziu as exportações e, portanto, a entrada da moeda estrangeira —enquanto isso, os pesos lotam os cofres dos bancos, já que a nota mais alta em circulação é a de 1.000, ou seja, pouco mais de 2 dólares.

Para minimizar emergencialmente o problema da fuga do câmbio, Massa anunciou uma segunda medida: importar da China pagando em yuan, e não mais em dólares, como também fez parcialmente o Brasil há um mês. O país asiático é o maior parceiro comercial brasileiro e o segundo da Argentina.

A terceira medida foi aumentar, pela segunda vez em uma semana, a taxa de juros. Ela subiu de 81% para 91% ao ano, para estimular as pessoas a investirem nos títulos do governo, o que significa um rendimento efetivo do dinheiro investido de 141% ao ano (acima das expectativas da inflação, ao redor de 120%).

Outra movimentação de Massa, nesta quinta, foi sentar para conversar com empresários, sindicatos e movimentos sociais. Ele indicou que quer fazer um acordo de "estabilidade nos preços" pelos próximos 90 dias, uma vez que as coisas estejam mais calmas.

"Não acho que isso tenha nenhuma influência no dólar", diz o economista Matías Surt, crítico à medida. "Já temos os preços controlados desde o fim do ano passado e a inflação sobe igual. É algo que já se tentou milhões de vezes na Argentina."

Depois de tudo isso, o dólar finalmente cedeu a partir de quarta-feira e se estabilizou —não se sabe até quando. Parte dos analistas relativiza essa última disparada da moeda e diz que ela não é tão alta em termos reais, porque acompanha a inflação, e foi a quarta do tipo desde 2020.

Etiquetas de preços sendo trocadas nas prateleiras de supermercado no bairro Villa Crespo, em Buenos Aires - Fernando Canzian - 25.mar.23/Folhapress

Na corrida eleitoral, quem mais se beneficia do caos econômico é o deputado ultraliberal Javier Milei (A Liberdade Avança). Sua principal proposta é a dolarização total da Argentina, vista por alguns como ousada e por outros como surrealista, pela falta de reservas do país.

A dolarização e o FMI foram os principais alvos da vice-presidente Cristina Kirchner numa palestra dada nesta quinta, em sua primeira aparição após a disparada do dólar e a saída de Fernández da disputa. Ela ainda faz mistério sobre uma possível candidatura, e sua coalizão Frente de Todos segue entre brigas e sem um nome definido.

O mesmo acontece na aliança de oposição Juntos pela Mudança. Com a desistência do ex-presidente Mauricio Macri, os principais nomes cotados são Patricia Bullrich, ex-presidente do Partido Progressista, e Horacio Larreta, governador da capital federal.

Pelo menos até agosto, quando ocorrem as primárias, o argentino continua na incerteza. "Estamos acostumados a viver assim", diz o técnico de ar-condicionado Javier. "Estamos tranquilos porque fomos campeões do mundo", provoca seu ajudante e cunhado, Demian Eloy, 18.

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