Itaipu deve ser uma estatal a serviço do desenvolvimento, diz novo diretor-geral

Enio Verri defende que usina binacional mantenha recursos para investir em sua missão socioambiental

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Brasília

O ano de 2023 é um marco para a usina binacional de Itaipu. A dívida para a sua construção foi quitada em fevereiro, o tratado que uniu Brasil e Paraguai como sócios no empreendimento completa 50 anos neste mês, e será possível renegociar os termos financeiros que podem redefinir a estrutura para arrecadar e gastar os recursos.

Antes mesmo dessa revisão diplomática bilateral, o novo diretor-geral de Itaipu, Enio Verri, já anuncia mudanças no lado de cá da fronteira.

A era das grandes obras no Paraná com recursos da usina, diz ele, está com os dias contados. Foram pontes, estradas, pista de aeroporto. No entanto, um número bem maior de municípios vai receber recursos para implementar projetos socioambientais com a marca do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"Itaipu foi quase que uma secretaria de obras do governo do estado. Vamos manter os compromissos firmados pela gestão passada, mas não vamos começar novas obras", diz Verri, em entrevista à Folha.

Enio Verri, diretor-geral de Itaipu, no interior da usina; assinatura do tratado para a construção completa 50 anos em 24 de abril - Rafa Kondlatsch/Itaipu Binacional

"Pretendemos ampliar o conceito de território de Itaipu, casado com políticas do governo federal. Claro que não precisamos fazer investimentos em Londrina, Maringá, Cascavel, cidades mais ricas. Mas as cidades menores, com o IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] mais baixo, serão atendidas", afirma.

Essa meta de colocar a estatal de energia a serviço de uma missão socioambiental, no entanto, tende a frustrar a expectativa de uma conta de luz mais barata —ambição de gerações de gestores da usina e do setor de energia no Brasil. As negociações da tarifa em 2022 e 2023 já sinalizam a tendência de garantir recursos extras, o que é defendida por Verri.

"No meu entender, Itaipu deveria mater o modelo atual, lembrando que parte do modelo implica em garantir retornos, não na forma de lucros, mas de outros benefícios, como investimentos em projetos de inovação e políticas públicas socioambientais", diz.

Como foi a negociação da tarifa de Itaipu deste ano? A gestão anterior deixou tarifa em US$ 12 e vocês fecharam em US$ 16. A tarifa não era US$ 12.

Provisoriamente, foi fixado e aplicado esse valor. Era provisório e unilateral. O governo não consultou o sócio paraguaio. Foi uma decisão até desrespeitosa, porque o Paraguai tem 50% de Itaipu.

Também causou um déficit na empresa. Algumas distribuidoras —parece que foram duas— já estavam praticando os US$ 12,67 (cerca de R$ 62,65 por kilowatt). Para cobrir o buraco, agora que fechamos a tarifa US$ 16,71 (R$ 79,11). O impacto no nosso fluxo de caixa ficará entre US$ 150 milhões (R$ 745 milhões) e US$ 160 milhões (R$ 794 milhões).

No ano de 2022 aconteceu o mesmo. Aplicaram um valor provisório de US$ 18,97, que durou até agosto, quando a tarifa foi fechada em US$ 20,75, mas cobriram a diferença para o ano todo. A direção passada teve de tirar de Itaipu US$ 220 milhões para cobrir essa outra decisão unilateral.

A tarifa de Itaipu deve cobrir apenas o custo para a usina funcionar. A maior conta sempre foi a dívida para construir a usina. A dívida foi quitada em fevereiro. Um estudo da gestão passada apontou que, sem a dívida, a tarifa ficaria entre US$ 10 e US$ 11. Na ponta do lápis, qual é o valor? Pelo cálculo que foi feito, em torno de US$ 12,67 o kW [kilowatts], mas pela lógica do Brasil. Isso levaria a uma redução maior do preço da energia. Mas o Paraguai queria manter os US$ 20. Foi preciso muita negociação para chegarmos a US$ 16,71.

Voltemos ao ano 2022. O Brasil não conseguiu manter a tarifa provisória de US$ 18, mas, segundo especialistas, era o valor correto. Ao aceitar os US$ 20, foi criado um extra de cerca de US$ 300 milhões, que são usados principalmente em obras públicas. Neste ano, ocorreu o mesmo —vai sobrar recursos que podem ser usados em obras públicas. A sua gestão vai manter essa dinâmica? Sim, mas com uma diferença. Nos últimos quatro anos, a capacidade de investimento de Itaipu no estado do Paraná foi concentrada na área da infraestrutura. Itaipu foi quase que uma secretaria de obras do governo do estado. Vamos manter os compromissos e as obras firmados pela gestão passada, mas não vamos começar novas obras.

Na nossa gestão, esses recursos serão usados na missão de Itaipu —e qual é a missão de Itaipu? Além de produzir energia limpa e de qualidade, é desenvolver políticas ambientais, sociais e na área de infraestrutura.

Queremos terminar a Unila, por exemplo. A Universidade Federal da Integração Latino-Americana está paralisada. Vamos trabalhar com outras iniciativas, como a organização da agricultura familiar e da pesca, políticas de reciclagem, de gênero, sociais, que visam a geração de emprego e renda, marcas do governo federal.

Empresários do Paraná afirmam que o sr. pretende reestruturar a divisão dos recursos. Isso é verdade? Pretendemos ampliar o conceito de território de Itaipu, casado com políticas do governo federal.

Com o fim do pagamento da dívida, Itaipu passa a ter um caráter estratégico no Paraná. Ela mantém uma dívida ambiental e social. Tem pago isso através de royalties e investimentos no oeste do estado. Mas hoje ela pode ajudar o Paraná inteiro. Claro que não precisamos fazer investimentos em Londrina, Maringá, Cascavel, cidades mais ricas. Mas as cidades menores, com o IDH mais baixo, serão atendidas.

O sr. deve saber que a política baseada nesses projetos socioambientais é chamada por alguns de 'pague dois e leva um', não? Não. Por quê?

Tudo é dividido entre os sócios de Itaipu, inclusive o dinheiro desses projetos. Cada dólar usado no Brasil em um projeto socioambiental representa outro dólar destinado ao Paraguai para uma missão socioambiental deles. No entanto, como 85% da energia de Itaipu é consumida pelos brasileiros, quem paga a maior parte dos projetos é o Brasil. Isso é justo com os brasileiros? São duas coisas aqui. O Paraguai não consome energia que é dele e, pelo tratado, só pode vender para o Brasil. O Brasil, por sua vez, precisa dessa energia. O importante dessa sua pergunta é que ela esclarece a briga pelo preço da tarifa. Nós queremos uma tarifa cada vez mais barata porque consumimos mais, e o Paraguai quer uma tarifa cada vez mais cara porque vende quase tudo para cá.

Isso deve durar mais uns dez anos, quando o Paraguai vai consumir toda a sua energia elétrica. Aí eu tenho impressão que ele vai querer baixar a tarifa.

A questão do investimento socioambiental não é bem assim como você falou. A divisão dos recursos é meio a meio, mas a política de investimento que nós fazemos não é exatamente igual. Não há nenhum compromisso do Paraguai em fazer política de inclusão social como nós queremos fazer no Brasil.

Mas quem está pagando a maior parte são os brasileiros, me refiro a isso. A tarifa é cobrada na conta de luz de todos os consumidores das regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste. Dados indicam que até 110 milhões de pessoas pagam por essa energia, quase 50% da população. Mas compramos porque precisamos.

O que estou dizendo é que maioria não tem acesso a esses benefícios socioambientais. Isso não é transferência de renda até socialmente injusta? Esse é um debate que está começando. Era mais injusto quando só atendia o oeste do Paraná, uma região de 56 ou 54 municípios, a depender da análise. O debate agora é ampliar isso.

Mas você tem razão. Quem pagou a conta de Itaipu foi o povo brasileiro. Itaipu é um bem nacional. Entretanto, os investimentos no Paraná se refletem em outras áreas. Por exemplo, quando Itaipu investe para terminar a Unila, o Ministério da Educação não vai tirar dinheiro do orçamento da educação para ela e, consequentemente, vai sobrar esse recurso para investir no resto do país.

No caso da universidade, podemos dar outro exemplo. Existem milhões de brasileiros vivendo em comunidades carentes nas região, sem acesso a um estudo superior, que vão pagar a universidade no Paraná pela conta de luz. Sim. O debate sobre isso já começou. Alguns ministros já chamaram a atenção para isso.

Tem um outro dado. A redução no valor da tarifa que conseguimos representa uma queda de 1 ponto percentual no valor da energia no país.

Em 26 de abril, o tratado de Itaipu completa 50 anos. Paga a dívida e decidida a eleição no Paraguai, será possível renegociar o Anexo C, que trata justamente das questões financeiras. O Brasil já sabe o que pretende reivindicar? Temos grupos técnicos, inclusive no Ministério das Relações Exteriores, estudando o Anexo C e preparando o material. No Paraguai, sabemos que o debate é mais aquecido e que discutem isso há três, quatro anos. Tem até frente parlamentar. A discussão entre chanceleres dos dois países deve começar a partir de agosto.

O rumo das negociações será afetado por quem sair vitorioso na eleição. Vou dar um exemplo.

Se vencer um candidato mais liberal, ele vai preferir fornecer energia elétrica para o Estado brasileiro ou vai querer vender no mercado livre? O Paraguai vai querer uma tarifa mais cara para continuar fazendo investimentos no Estado, além de fornecer energia, ou, por conta do seu crescimento econômico, que está sendo constante, vai achar melhor baixar o preço e melhorar sua competitividade no mundo?

O que é importante é a gente refletir que Itaipu só conseguiu sobreviver 50 anos por causa de um profundo diálogo. A gente briga, sofre com ruídos, temos problemas de interesses, nossos países são díspares em vários sentidos, mas o respeito mútuo nos permitiu chegar até onde estamos.

Itaipu não gera lucro. Cobra o valor necessário apenas para se manter. Na sua opinião, qual seria o modelo mais apropriado? No meu entender, Itaipu deveria mater o modelo atual, lembrando que parte do modelo implica em garantir retornos, não na forma de lucros, mas de outros benefícios, como investimentos em projetos de inovação e políticas públicas socioambientais.

Defendo esse papel. O papel de uma empresa estatal, que não gera lucro, mas seja um instrumento de motivação do desenvolvimento econômico e social.

Nessa perspectiva, não estaria no escopo, pelo menos no curto prazo, uma redução no custo e, por consequência, na tarifa, até porque seria preciso garantir recursos extras. Sim, precisaria.


RAIO-X

Enio Verri, 62

Natural de Maringa (PR), é economista e mestre em Economia pela UEM (Universidade Estadual de Maringá), onde lecionou, e doutor em Integração da América Latina pela USP (Universidade de São Paulo), além de especialista em Teoria Econômica pela Faculdade Estadual de Ciências Econômicas de Apucarana. Foi deputado federal e estadual pelo PT.

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