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'Morte do autor': Um crítico literário resenha livro escrito por robô

Obra é um suspense feito a partir de ferramentas como o ChatGPT

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Dwight Garner
The New York Times

Siri, o que era o romance?

"Já que você perguntou, era a forma mais sutil de expressão conhecida pelos humanos. O primeiro romance foi provavelmente o 'Conto de Genji', de Murasaki Shikibu, escrito no século 11. O último relevante, fechando o ciclo de um milênio, foi provavelmente ‘Dentes Brancos’, de Zadie Smith, publicado em 2000. O que veio desde então foi o estertor da morte e remixes desse estertor da morte."

Essas não foram, como você deve ter adivinhado, palavras da Siri. Esse foi o seu correspondente humano, escrevendo em um laptop num apartamento em Manhattan e apresentando um argumento plausível há séculos: que literatura é "muerte".

Os obituários da literatura são antigos. Samuel Richardson, no século 18, perguntou se o romance havia dito o que tinha a dizer. Theodore Adorno argumentou que escrever poesia depois de Auschwitz era barbárie. Jorge Luis Borges fez uma carreira decisiva ao reconhecer, em suas "ficciones", a quase impossibilidade de fazer obras literárias originais.

Na ilustração de Marcelo Martinez: uma flor seca com 5 pétalas rosas, entre as páginas de um velho livro aberto.
Ilustração de um livro - Marcelo Martinez

Essas questões voltaram à tona graças à chegada repentina de sofisticados chatbots de inteligência artificial, principalmente o ChatGPT. Ele fornece preenchimento automático, ou coisa parecida, em um nível sobrenatural. O ChatGPT provocou terror em muitos autores. Sua presença rastejou como um tumor pela espinha de outros malucos. Vá abraçar um escritor.

Agora chega um novo romance, "Death of an Author" [A morte de um autor], uma trama de assassinato publicada sob o pseudônimo de Aidan Marchine. É o trabalho do romancista e jornalista Stephen Marche, que extraiu a história de três programas, ChatGPT, Sudowrite e Cohere. A linguagem do livro, diz ele, é 95% gerada por máquina —um pouco como a comida do restaurante Ruby Tuesday.

Bem, alguém iria fazer isso. Na verdade, outros golpistas na Amazon já o fizeram. Mas "Death of an Author" é indiscutivelmente o primeiro romance de IA parcialmente legível, um vislumbre do que está vindo por aí. Foi organizado por um escritor letrado que empurrou o robô em direções tortuosas. Ele o fez cuspir mais que frases feitas, algumas vezes. Se você apertar os olhos, poderá se convencer de que está lendo um romance de verdade.

Assustador? Talvez. Um grande negócio? Quando o manifesto antinuclear de Jonathan Schell, "O Destino da Terra", foi publicado em 1982, o crítico Eliot Fremont-Smith escreveu que a editora Knopf deveria cancelar o resto de seus lançamentos de primavera em respeito a ele. Não vamos esvaziar o calendário para "A Morte de um Autor".

O livro tem um vigor metaficcional. É sobre uma conhecida escritora canadense chamada Peggy Firmin, que lembra vagamente Margaret Atwood. Ela está participando de um projeto de IA em colaboração com um bilionário, do tipo que anda de blusão de capuz, que já namorou Meghan Markle. Seu nome é Neil Gibson, em homenagem, supõe-se, aos escritores cyberpunk Neil Stephenson e William Gibson, embora ele seja um imbecil e, pelo que sei, Stephenson e Gibson não são.

Depois que Firmin é morta a tiros numa ponte deserta, chocando o mundo literário, um pequeno grupo de pessoas é convidado para seu funeral. Firmin, na forma de um avatar feito pela mais recente IA, faz o discurso em seu próprio funeral. É o tipo de fala que, no estilo de Agatha Christie, deixa todos arrepiados, perguntando-se se o assassino estaria na sala.

Um detetive, na forma de um estudioso de Firmin, está rondando. O programa de IA em que a escritora e Gibson estavam trabalhando começa a incorporar os suspeitos. Quem é real? Firmin está buscando vingança do além-túmulo? O estudioso está sendo pego? Alguém quer matá-lo? Afinal, o que significa ser um "autor"? E assim por diante.

Não sou um grande leitor de livros policiais e raramente me importo com quem os escreveu. "Death of an Author" é inteligente, sem dúvida, mas me deixou com a sensação de vazio, como se eu tivesse feito uma refeição de "arenques vermelhos" [pistas falsas].

A prosa tem geralmente o ritmo hesitante de um verbete da Wikipédia. Se esse romance pudesse exalar, seu hálito certamente teria o cheiro, para usar palavras de Ian McEwan em seu romance "Máquinas Como Eu", como a parte de trás de um televisor quente.

O que é interessante são os momentos em que você sente Marche forçando a IA, como Wendy Carlos inclinada sobre seu sintetizador Moog, ou um garoto sacudindo uma máquina de pinball, para ser mais profundo. Firmin prevê, por exemplo, onde poderemos estar daqui a alguns anos com essa tecnologia:

"Também veremos histórias criadas especificamente para indivíduos dentro de sua experiência, a capacidade de recriar parentes mortos usando a tecnologia de IA. Histórias em que o público nem sabe que eles são histórias. Personagens que são sentidos tão profundamente que não são personagens, mas você se torna o personagem. Vai ser uma confusão maravilhosa."

"Maravilhosa" talvez não seja a palavra que eu escolheria.

É difícil dizer quando você está lendo Marche e quando está lendo IA, mas é bom saber que ainda pode haver algum tipo de humor no mundo de nossos senhores da linguagem digital com verificação ortográfica. Há uma piada sobre o horror do metaverso, e uma carta tem a despedida sexy "Desejando seu algoritmo".

A linguagem figurativa é um acerto, até errar. "O cheiro de café era como uma neblina de um campo queimando." Os bots também devem se sentir solitários. Esse livro declara, contra todos os ditames do bom senso, que "até o bolo mais delicioso é ruim comido sozinho".

Marche defende de forma convincente, em um posfácio, que os escritores vão manipular a IA da mesma forma que os produtores de hip-hop desenterram e arranjam "samples". Aqueles com o melhor gosto e mais conhecimento farão as melhores coisas, alguns com um talento particular.

Eu estava sendo malicioso, é claro, quando declarei que o romance está morto, embora se eu fosse encurralado ou empurrado para o palco num debate, provavelmente poderia elaborar uma defesa de "Dentes Brancos" como uma espécie de projeto acadêmico.

A ficção é mais importante hoje, num mundo cada vez mais desenraizado pela tecnologia. A IA nunca representará uma ameaça para a coisa real –para a escrita com convicções, dúvidas honestas, sagacidade enigmática, uma visão pessoal do mundo, crueza e originalidade.

Outra palavra para essas qualidades é "alma", que é exatamente o que falta ao ChatGPT. Deixados totalmente nus diante do ataque violento da IA podem estar os escritores de certos best-sellers estereotipados, mas isso é problema dos seus agentes.

Há pessoas inteligentes por aí que querem apertar "pause" no desenvolvimento da inteligência artificial, puxar o fio da tomada por algum tempo. Sobre isso sou ambivalente.

Mas tarde da noite, quando estou lutando contra meus próprios medos e imaginando os piores cenários de IA para o planeta, às vezes penso numa frase que J.M. Coetzee atribuiu a Mark Twain e parafraseou assim: "Quando um escritor americano não sabe como terminar uma história, ele atira em todos que estão à vista".

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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