Concurso público para salário de R$ 21 mil aprova mais homens e pós-graduados

Apesar de ser tida como porta de entrada democrática, disputa por vagas na alta administração pública é desigual

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São Paulo

Um levantamento de dados com aprovados em um dos concursos públicos mais cobiçados do país, o de auditor federal do Tribunal de Contas da União, que paga salário inicial de R$ 21,9 mil, revelou que o perfil de quem venceu a concorrência, em 2022, é composto por homens com idade de 32 anos, de classe média e que conseguiram se dedicar aos estudos por dois ou três anos.

O trabalho analisou 153 pessoas —o total de aprovados, mais a cota de reserva— e seu resultado exemplifica a falta de pluralidade de oportunidades para quem pretende ingressar na carreira pública.

Esta é a primeira de uma série de cinco reportagens que vão debater temas que ligam responsabilidades dos governos e de seus servidores. O especial integra o núcleo editorial Vida Pública, parceria entre a Folha e o Instituto República.org.

De acordo com o levantamento interno do tribunal, 78,4% dos aprovados são homens. Bruno Dantas, presidente do TCU, reconhece que há falta de diversidade de gênero.

"A participação feminina nos concursos promovidos pelo TCU ainda está abaixo do desejável, mas vem crescendo. Este ano, a representação de mulheres entre os nomeados foi de 21%; no concurso anterior, elas ocuparam apenas 8% das vagas", diz o ministro.

"Mas sou irresignado com esse quadro e tenho agido para mitigá-lo. Uma medida importante foi a minha determinação, no último concurso, de que a banca examinadora fosse composta paritariamente por homens e mulheres."

Os dados não mostram quantos dos aprovados eram negros. Para concorrer a uma vaga de auditor do TCU, o candidato tinha de ter mais de 18 anos e formação em curso superior de qualquer área. Cerca de 20 mil pessoas disputaram vagas no concurso de 2022.

Atualmente, o tribunal conta com cerca de 1.500 auditores de controle externo espalhados pelo país.

Para Julia Lenzi, professora da Faculdade de Direito da USP, o perfil dos aprovados no TCU é uma realidade dentro do serviço público no Brasil.

"É interessante a gente pensar que o Estado chega a grande parte da população na forma de um homem branco, e isso tem uma perspectiva de não representação, de não conhecimento a respeito das múltiplas realidades que vivem as pessoas no Brasil", diz a professora.

Há mais de 20 anos sendo discutida na Câmara dos Deputados e no Senado, a reformulação dos concursos públicos voltou aos holofotes neste ano com a promessa do governo de mudar as regras, incluindo novos instrumentos para a seleção do servidor. Para os especialistas, as mudanças são mais do que necessárias para fortalecer o processo democrático.

"Os concursos não são capazes de aferir quanto o candidato tem de aptidão efetiva para aquela função. Acaba excluindo pessoas que não têm capacidade econômica ou social para se dedicar a esse tipo de conhecimento. Ela pode ter habilidades práticas que não são medidas", diz Vera Monteiro, professora de direito administrativo da FGV e vice-presidente do conselho da República.org.

Para a professora Ana Cristina Juvenal da Cruz, diretora do Centro de Educação e Ciências Humanas da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), o concurso público se mantém como uma porta democrática, mas ainda existem muitas barreiras étnicas e sociais para o candidato.

"Ainda que o concurso público seja mais democrático, ele exige um tempo de preparação muito grande e uma estrutura pessoal que permita a concorrência. A lei não está sendo cumprida, pois tem beneficiado esse perfil de homens brancos que já vêm de um extrato de classe social superior", diz a professora, citando a lei de cotas para a entrada no serviço público federal, que poderá perder sua validade em 2024.

Imagem colorida mostra Lígia, uma mulher branca de 31 anos, sentada e olhando para a tela de um computador
Lígia Mendonça, 31, estuda no apartamento onde mora, na região central de São Paulo, para prestar o concurso da Defensoria Pública - Adriano Vizoni/Folhapress

Procurando ampliar o acesso dentro dessa preparação para a entrada no serviço público, organizações têm oferecido cursos gratuitos, como é o caso do Curso Popular de Formação de Defensoras e Defensores Públicos.

Fundado em 2016, ele é colaborativo e voltado para alunos em vulnerabilidade socioeconômica. Funciona em modelo híbrido, com aulas presenciais e virtuais.

"Pensamos na carreira da defensoria, pois o público que ela atende é de pessoas socialmente vulneráveis, pobres. Mas pode ser que os nossos alunos busquem outras carreiras também. Se forem, que façam também a diferença e consigam ter uma boa atuação", diz Francisca Oliveira Souza, que faz parte da coordenação acadêmica do curso.

Formada em direito, Lígia Maria Teixeira Mendonça, 31, é uma das alunas do curso, com o objetivo de buscar uma vaga na Defensoria Pública. Para ela, a preparação tem desafios.

"Trabalho o dia inteiro em um escritório, e isso já diminui meu tempo de estudo. Também moro sozinha e preciso dar conta dos afazeres domésticos. Conciliar tudo isso e ainda ter ânimo para assistir aula é cansativo. A gente acaba deixando o estudo de lado para priorizar o trabalho, até para poder se manter na vida. Então, o estudo acaba não sendo linear, tem altos e baixos."

Outro dado da pesquisa do TCU é que 88,9% dos aprovados já tinham outras aprovações em concursos públicos, e mais da metade —56,2%— contavam com, pelo menos, uma pós-graduação. Além disso, 74,5% estudaram em instituições públicas.

Segundo a professora Vera Monteiro, esse alto número de servidores aprovados revela também a figura do concurseiro, que é o candidato que está sempre buscando as melhores posições, não tem preferência a partir das suas aptidões para o exercício de determinado cargo.

"Fica pulando de carreira em carreira. Isso é muito claro nesse caso do TCU, em que muitos dos candidatos estavam estudando há um bom tempo, participam de outros concursos no meio do caminho para treinar ou ter uma remuneração melhor, mas sem objetivo específico de vínculo, e vão assim galgando posições na administração pública."

O engenheiro químico Virgilio José Martins Ferreira Neto, 35, prestou concurso para o setor de segurança de processos da Petrobras em 2021 —apesar de ser uma empresa de capital aberto, ela adota o modelo dos concursos. Antes de se inscrever, ele chegou a desanimar, entendendo que a disputa seria desigual por causa dos concurseiros. Acabou mudando de ideia após o edital.

Imagem colorida mostra Virgilio Ferreira, um homem branco de 35 anos. Ele veste uma camisa social azul claro e uma calça bege. Usa barba e tem a imagem refletida em uma porta de vidro à direita.
O engenheiro químico Virgílio Ferreira, 35, nas ruas do centro do Rio de Janeiro; ele passou no concurso da Petrobras em 2021 - Eduardo Anizelli/ Folhapress

"Alguns pontos me fizeram tentar o concurso: não ia ter prova antiga, não haveria cursinhos e iriam mudar a banca também. Isso tudo colocou todo mundo em pé de igualdade a partir do edital", disse Ferreira, que tem um perfil com algumas características dos candidatos que prestaram a prova do TCU.

Ele é casado, tem um filho de dois anos, possui pós-graduação e condições de tirar um período de 40 dias sem trabalho para estudar para o concurso.

"Estava em uma consultoria pequena, trabalhando como pessoa jurídica. Então, achei que estava nas mesmas condições [dos demais candidatos do concurso] e dava para arriscar. Também tinha uma reserva financeira que facilitava ficar estudando", disse Ferreira, que passou no concurso.

Cotas contra disparidades

Em 2014, foi instituída a lei 12.990, que reserva aos negros 20% das vagas oferecidas em concursos da administração pública federal. Por ser uma ação afirmativa, ela deve ser revista após dez anos, ou seja, em 2024. Há movimentações no Congresso para que uma nova lei seja votada, com ampliações.

"Apesar do crescimento no fluxo, mais da metade do estoque de servidores do Executivo federal é branca. É necessário que a vigência da lei de cotas seja prorrogada. Assim, a diversificação racial das carreiras federais poderá ganhar escala", diz Ana Paula Karruz, professora coordenadora do curso de graduação em gestão pública da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

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