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Rana Foroohar

Barbie é uma rara vencedora das guerras culturais corporativas

Empresas americanas se vêem cada vez mais na mira das discussões sobre costume

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Rana Foroohar

Colunista de negócios globais e editora associada do Financial Times em Nova York

Financial Times

"Não queremos a Disneylândia treinando nossas forças armadas." Essa foi uma fala do presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Kevin McCarthy, em uma coletiva de imprensa na semana passada em que ele e outros republicanos defenderam a inclusão de dispositivos "anti-woke" em um projeto de lei sobre gastos militares –dispositivos criados para limitar os direitos de aborto, a educação sobre diversidade e a assistência médica a transgêneros.

O fato de o governador ter citado nominalmente a Disney, que vem tendo problemas sérios na Flórida desde que seus executivos se opuseram à lei dita "don’t say gay", do governador Ron DeSantis, é revelador. (A lei impede escolas de promover a discussão sobre orientação sexual e identidade de gênero.)

Diferentemente do Departamento de Defesa, a América corporativa está na mira das guerras culturais americanas há anos.

Margot Robbie em cena do filme "Barbie", dirigido por Greta Gerwig
Margot Robbie em cena do filme "Barbie", dirigido por Greta Gerwig - Divulgação

Pense não apenas na Disney, que vem tendo que enfrentar processos judiciais conservadores, um conselho especial de fiscalização corporativa na Flórida repleta de agentes políticos escolhidos a dedo por políticos republicanos, e até mesmo a possibilidade de o Estado construir uma penitenciária gigante perto de seus parques temáticos –todas essas coisas que obrigaram a empresa a cancelar investimentos de vulto em um mercado importantíssimo.

Pense também na Bud Light, que perdeu sua posição de liderança no mercado quando suas vendas despencaram na primavera passada após uma disputa em torno de uma influencer transgênero (paga pela empresa) que postou seu apoio a um concurso patrocinado pela empresa. Ou pense na reação negativa enfrentada online pela North Face, fabricante de roupas e acessórios para atividades ao ar livre, depois de ter divulgado um vídeo de uma drag queen no mês do Orgulho Gay. Na realidade há dezenas de exemplos de empresas que lutam em vão para vencer as guerras culturais.

De algumas maneiras, a ligação entre ativismo e comércio é algo tão tipicamente americano quanto a torta de maçã. Boicotes de produtos britânicos promovidos em Boston, Nova York e Filadélfia foram precursores da Guerra de Independência americana. Boicotes de consumidores também fizeram parte das lutas sindicais e trabalhistas do final do século 19 (os sindicatos os encaravam como um método de protesto que custava pouco, mas era eficaz) e também das lutas pelos direitos civis nos anos 1950 e 1960 e do movimento feminista das décadas de 1970 e 1980. Campanhas contra grandes empresas que fazem uso de trabalho infantil ou têm baixos padrões ambientais estão presentes há décadas.

Mas o chamado "capitalismo woke" de hoje é diferente, de várias maneiras. Para começar, requer que as empresas tomem posição imediata sobre múltiplas questões politicamente divisivas. Há as questões de identidade, impelidas em grande medida pelo movimento Black Lives Matter, que começou em 2013 e ganhou força após o assassinato de George Floyd sob custódia policial.

Esse fato levou grandes corporações como Apple, Google, Hasbro, Estée Lauder, Walmart, Adidas, Reebok e muitas outras a anunciar grandes iniciativas pró-diversidade e a gastar centenas de milhões de dólares para promover a justiça racial.

Mas há também as pressões em torno da governança ambiental, social e corporativa (ESG, na sigla em inglês) das empresas e o capitalismo "para as partes interessadas", que aumentaram após o chamado lançado pelo fundador da BlackRock, Larry Fink, em 2018 para que as empresas "façam uma contribuição positiva para a sociedade" e não se limitem a buscar o lucro.

Esse chamado à ação não é acoplado a nenhum critério de medição particular. Mas passou a abranger tudo, desde diversidade de gênero e racial nos conselhos de direção até sustentabilidade da cadeia de fornecimento, passando por preocupações mais específicas de cada indústria, como o consumo de açúcar, as vendas de armas, a política imigratória e o capitalismo de vigilância, especialmente no que diz respeito a crianças online.

É muita coisa para as empresas levarem em conta, e muito poucas o estão fazendo bem. Alguns anos atrás a companhia aérea Delta tentou limitar as preocupações dos consumidores com o controle de armas, eliminando seus descontos corporativos para a National Rifle Association (associação que representa o lobby das armas de fogo nos EUA). Ela acabou perdendo um incentivo fiscal de US$ 38 milhões da Geórgia, o estado de sua sede.

A empresa de roupas e equipamentos esportivos Under Armour foi criticada por progressistas pelos comentários positivos feitos por seu executivo-chefe sobre o presidente Donald Trump. E depois disso foi desancada por republicanos por ter se retirado do Conselho Manufatureiro Americano, formado por Trump, após as tensões raciais e violência em Charlottesville em 2017.

Essas pressões são amplificadas pela mídia social em uma velocidade que é impossível de se acompanhar. Desconfio que o cenário só vai se complicar quando organizações multinacionais lidam com as sensibilidades nacionais inerentes ao processo de "de-risking" (redução de riscos) –ou desacoplamento, dependendo de com quem você fala.

Quem se lembra da recusa de Pequim em transmitir partidas da NBA na China depois de o técnico dos Houston Rockets ter expressado seu apoio aos protestos pró-democracia em Hong Kong? Ou dos boicotes de consumidores chineses à H&M, Nike e Adidas por se recusarem a comprar algodão cultivado em Xinjiang, devido às preocupações com trabalho forçado na região? Com os fluxos de capital entre China e EUA virando uma área de atenção regulatória, eu não me surpreenderei se a BlackRock e outras grandes instituições financeiras começarem a sofrer pressão.

Será que qualquer empresa consegue ganhar as guerras culturais? Possivelmente. A Mattel parece estar a caminho de converter a Barbie –uma marca que existe há 64 anos e que literalmente converte mulheres em bonecas— em algo que representa um ideal feminista pós-moderno cool.

O segredo para isso foi a contratação da diretora de filmes de arte Greta Gerwig para produzir um filme que parodia a ideia toda da mulher como objeto, ao mesmo tempo em que nos permite curtir a sósia de Barbie, Margot Robbie, na telona. Parodiar seu próprio produto para vender mais dele? Isso é marketing genial.

É claro que Barbie tem muitas coisas que valem pontos positivos para ela no mundo de hoje. Ela vem em 35 tonalidades de pele e nove tipos de corpo. Há Barbies de hijab, Barbies com síndrome de Down, com vitiligo, com próteses de pernas e que andam em cadeira de rodas. E é claro que na Casa dos Sonhos da Barbie não há limites ao que uma boneca mulher pode realizar. Barbie pode ter um gosto bizarro pelo cor-de-rosa, mas pode ser astronauta e médica, se quiser. Para a sorte da Mattel, ela geralmente não consegue falar nem compartilhar ideias políticas controversas.

Tradução de Clara Allain

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