'Fora da porteira', apagão logístico é ameaça ao agronegócio

Salto da produção não foi acompanhado por investimentos em infraestrutura

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São Paulo

As margens da BR-163 são douradas. Na rodovia por onde passa grande parte da safra de grãos do país, no Mato Grosso, o desperdício é visível a partir do milho que cai de caminhões que trafegam pela via, repleta de buracos e problemas de manutenção —mesma realidade de vários pontos do país.

O Brasil chegou à supersafra de grãos antes do esperado. A de 2022/23 está projetada em 316 milhões de toneladas pela Conab (Companhia Nacional do Abastecimento), algo previsto para 2028. Há dez anos o país produzia menos de 190 milhões de toneladas.

Se já havia dificuldades para armazenagem, escoamento e exportação, o cenário complicou ainda mais. O crescimento maior da produção do que o avanço das condições logísticas dá novo peso ao transporte rodoviário, eleva custos e aumenta a necessidade de o país usar estradas cada vez mais distantes e menos preparadas.

Milho que cai de caminhões na BR-163, principal rodovia para o escoamento da produção de grãos em Mato Grosso e que tem problemas de conservação. - Fernando Canzian/Folhapress

No primeiro semestre deste ano, as exportações de soja, farelo, milho e trigo somaram 88 milhões de toneladas, 19% a mais do que nos seis primeiros meses de 2022, segundo a Anec (Associação Nacional dos Exportadores de Cereais).

No segundo semestre, a pressão continuará porque o Brasil, pela primeira vez na história, deverá colocar um volume de milho superior a 50 milhões de toneladas no mercado externo.

Para Thiago Péra, coordenador do grupo Esalq-Log, da USP, os desafios aumentam. O governo federal e a iniciativa privada investem apenas de 0,4% a 0,6% do PIB (Produto Interno Bruto) em transporte. Países como China e Estados Unidos têm taxas superiores a 2%.

Com isso, mesmo com o avanço da rede ferroviária, a malha rodoviária atual tem uma participação maior no sistema de transporte do que em 2010.

Essa necessidade de escoamento dos grãos cresce ainda mais porque o país tem uma baixa capacidade estática de armazenagem. Em 2021, era de 75% a 80%. A dos Estados Unidos é de 150% da capacidade de produção.

Isso tem reflexos no transporte. Uma vez que o produtor está colhendo mais, há uma demanda maior por caminhões, sobe o custo dos fretes e aumenta a fila de embarque e desembarque de produtos. A conta final vai para o bolso do produtor e dos consumidores.

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Caminhões fazem fila na chegada ao porto de Miritituba, na cidade de Itaituba (PA). - Zanone Fraissat/Folhapress - 21.fev.20

Boa parte da soja, atualmente o produto com maior volume de produção nacional (156 milhões de toneladas neste ano), sai da fazenda para o armazém. Do armazém vai até um terminal ferroviário, e deste, para o porto de Santos. Essa movimentação tripla da carga supera em muito o volume produzido.

Se o custo da má logística já é pesado, poderá ficar ainda pior. A queda da taxa de câmbio vai encarecer mais o produto brasileiro para o importador, e o país perderá competitividade.

Péra afirma que os custos de uma malha de transporte baseada no rodoviário encarecem muito, uma vez que os caminhões têm baixa eficiência.

Quando o diesel esteve a R$ 3,50 por litro, o custo de transporte de uma tonelada de soja de Sorriso (MT) a Santos (SP) era de R$ 94. Com o diesel a R$ 7, subiu para R$ 200.

"Não estamos bem em rodovias. A qualidade é precária, principalmente quando se sai de São Paulo. A pavimentação é inadequada, e isso gera ineficiência e aumento de custos", diz o coordenador da Esalq.

Segundo a CNT (Confederação Nacional do Transporte), em Mato Grosso, maior produtor de grãos do país, apenas 21% das rodovias podem ser consideradas ótimas ou boas. No Rio Grande do Sul, 33,9%; no Paraná, 37,9%.

Mesmo com trechos pedagiados, a BR-163 é considerada apenas regular em sua maior parte. Segundo Bruno Batista, diretor-executivo da CNT, a estrada "já nasceu subestimada". "Há necessidade de investimentos no país inteiro, e o governo deveria estar aberto para uma participação privada cada vez maior", diz.

No dia a dia, sofre quem usa essas rodovias. "É triste. Muitos a chamam de rodovia da morte. Não tem acostamento e há um desnível lateral muito alto. Se ocorre um problema numa ultrapassagem e precisamos sair da estrada, o caminhão tomba ou bate de frente", diz José Martins, 55, que transporta cargas pela BR-163 diariamente.

José Martins, 55, que trafega pela BR-163, no Mato Grosso, e que a considera "a estrada da morte" por conta dos acidentes. - Fernando Canzian/Folhapress
Carreta com soja tomba às margens da BR-163, principal rodovia que corta o estado do Mato Grosso e por onde passa boa parte da produção agrícola do país. - Fernando Canzian/Folhapress

Outro caminhoneiro, que não quis se identificar, contou à reportagem que havia sido assaltado na véspera. Ficou 12 horas com bandidos, que levaram o caminhão e a carga.

"Não fosse o custo da infraestrutura, seríamos ainda mais competitivos. Tirar a soja de Mato Grosso e levá-la para Paranaguá ou Santos é cada vez mais difícil. Há uma falha histórica em fazer investimentos em ferrovias e portos, com participação do setor privado. Pensar que o Estado faria tudo sempre foi um problema enorme", diz Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados.

"Até os anos 1970, a agricultura era costeira, mas a "gauchada" foi para o Centro-Oeste e puxou o resto do Brasil, como uma locomotiva puxando vagões de gente de outros estados para a região. Mas a ferrovia, o armazém e o porto não foram", diz Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura no governo Lula 1.

Segundo Péra, no entanto, alguns pontos melhoram. O transporte por hidrovia ganha espaço, devido ao aumento do volume de grãos que está saindo para exportação pelo Arco Norte —em São Luís/Itaqui/PDM (MA), Belém/Barcarena e Santarém (PA). Em 2010, eles eram responsáveis por 10% das exportações de grãos. Hoje, já somam 30%.

Empresas do setor privado também se movimentam para aumentar participações na logística voltada ao agro. Em março, a gigante do ramo JSL adquiriu a IC Transportes, ampliando a atuação no transporte de fertilizantes, grãos e etanol. Com o negócio, a receita com o segmento passou de 20% para 25%

Segundo Ramon Alcaraz, CEO da JSL, as perspectivas de crescimento na área são muito positivas. Mas, majoritariamente dependente de rodovias, Alcaraz diz que os investimentos públicos e privados no modal precisam ser ampliados para dar conta do volume transportado ser cada vez maior.

Por outro lado, projetos ferroviários também são vistos com bons olhos. "Mas uma ferrovia demora dez anos para ser construída. A falta de definições no setor e possíveis mudanças das regras no meio do caminho afastam os investimentos estrangeiros", diz Péra.

"Sem novas opções de transporte e readequação de portos, poderemos de novo voltar a falar em apagão logístico, em vista da rápida evolução da produção agropecuária do país."

Elisângela Pereira Lopes, coordenadora de Assuntos Estratégicos da CNA, destaca o aumento do interesse em novas ferrovias, mas diz serem necessárias garantias jurídicas. "Nesse setor, há muito a ser feito, já que apenas 17% da movimentação delas é com grãos."

Na cabotagem, além da regulamentação do marco legal, os portos precisam fazer as devidas obras para receber novos navios. "No transporte hidroviário, ainda não existe um marco regulatório e, nas estradas, não vejo mudanças expressivas. Elas estão cada vez piores, devido à falta de recursos para manutenção", afirma.

"O agro brasileiro só é competente da porteira para dentro. Para fora, arca com custos muito elevados", resume Fernando Camargo, do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura.

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