Descrição de chapéu Financial Times China

Dívida de governos locais ameaça economia da China

Autoridades regionais do país acumularam uma montanha de empréstimos

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Cheng Leng Andy Lin
Hong Kong | Financial Times

Outrora conhecida como uma das províncias mais pobres da China, a região montanhosa de Guizhou ficou famosa na última década por uma razão diferente: ela abriga algumas das pontes mais altas do mundo.

Desde a ponte sobre o Rio Duge Beipan, com 565 metros de altura, que liga Guizhou à província vizinha de Yunnan, até a ponte Pingtang, com 332 metros de altura, que atravessa o desfiladeiro do Rio Caodu, o investimento de Guizhou em infraestruturas ajudou a tirar a província da pobreza, conquistando elogios especiais do presidente Xi Jinping.

Mas o terreno elevado também tem um alto custo. A dívida de Guizhou totalizava 1,2 bilhão de iuans (R$ 800 milhões) no final de 2022. Com uma proporção dívida/produto interno bruto de 62%, é uma das províncias mais endividadas da China.

Prédios em construção em Pequim, na China - Tingshu Wang - 11.jan.2023/Reuters

A enorme quantidade de empréstimos acumulados pelas províncias chinesas, muitos deles através de veículos de financiamento dos governos locais (LGFV na sigla em inglês) –empresas de investimento que contraem dívidas e constroem infraestruturas em nome dos governos locais–, tornou-se um enorme problema para a segunda maior economia do mundo. O aumento da tensão entre os governos locais e centrais sobre a dívida surge num momento em que Pequim procura novos modelos de crescimento econômico regional.

"Os LGFVs são um legado do antigo modelo de crescimento de expansão da oferta que dependia de investimentos pesados para criar empregos e rendimentos", disse Chi Lo, estrategista sênior de investimentos do BNP Paribas Asset Management em Hong Kong. "A estrutura de crescimento da China está mudando agora. Quando ela muda, os antigos veículos de financiamento que serviram à velha economia tornam-se obsoletos."

Os governos locais, normalmente sustentados por verbas de Pequim e pelos lucros provenientes da venda de terrenos, há muito são incentivados a contrair empréstimos para financiar o desenvolvimento regional.

O primeiro LGFV foi criado por volta de 1998 para financiar a construção de uma rodovia. A prática ganhou tração após um pacote de estímulo de 4 bilhões de iuans (R$ 2,68 bilhões) em 2009, que incentivou as províncias a investir e impulsionar o crescimento. Os bancos viam os LGFVs –implicitamente apoiados pelos governos locais– como clientes seguros e, no final de 2022, a dívida oficial dos governos locais da China totalizava 94 bilhões de iuans (R$ 62,98 bilhões), de acordo com uma estimativa do Goldman Sachs.

As finanças dos governos locais entraram em colapso durante a pandemia do coronavírus, em parte devido ao aumento das despesas públicas relacionadas à Covid e a uma queda na venda de terrenos dos quais dependiam para obter receitas. Com uma enorme pilha de repagamentos de dívidas onshore com vencimento em 2023 e 2024, aumentou a pressão sobre os governos locais, que já enfrentam dificuldades durante uma desaceleração econômica.

"A dívida local está aumentando de forma incontrolável", disse Victor Shih, professor de economia política chinesa na Universidade da Califórnia em San Diego. "A dependência dos governos locais do governo central e da emissão de dívida está piorando cada vez mais, de uma forma muito rápida."

Uma quase inadimplência por parte de Zunyi, segunda maior cidade de Guizhou, em dezembro, alimentou preocupações de uma crise financeira sistêmica e esperanças de resgates do governo central. A Zunyi reestruturou seu empréstimo de 15,6 bilhões de iuans junto dos bancos em janeiro, chocando os credores. A Comissão Reguladora de Valores Mobiliários da China prometeu na semana passada evitar inadimplências nos títulos LGFV.

Pequim decidiu enviar equipes de funcionários do banco central, do Ministério das Finanças e do órgão de fiscalização de valores mobiliários para mais de dez províncias com finanças mais fracas, para examinarem seus livros e encontrarem formas de reduzir as dívidas. Serão avaliados os balanços dos governos para decidir qual a melhor forma de reduzir os ativos duvidosos e a dívida. Acadêmicos, especialistas e outros já deram informações às autoridades, incluindo o primeiro-ministro, Li Qiang, segundo documentos de representação obtidos pelo Financial Times.

Uma sugestão é trocar parte dos estimados 59 bilhões de iuans por "dívida oculta" –empréstimos que não são contabilizados e muitas vezes obtidos através de canais privados por títulos oficiais do governo local. A agência de informações financeiras chinesa Caixin informou no domingo que até 1,5 trilhão de iuans poderão ser trocados. Mas, como argumentou repetidamente em discursos públicos o antigo ministro das Finanças, Lou Jiwei, muitas dessas trocas apenas atrasariam a resolução do problema, em última análise aumentando a alavancagem.

Espera-se também que os especialistas sugiram o aumento da maturidade dos empréstimos aos LGFVs para 25-30 anos e a redução das taxas de juros, dando aos LGFVs algum espaço para respirar para encontrar novas fontes de receitas. Os bancos absorveriam indiretamente os custos. O risco de tal reestruturação levou alguns bancos de investimento a reavaliarem as classificações dos bancos estatais com elevada exposição a LGFVs. Os lucros dos bancos comerciais seriam 6% mais baixos se 10% dos seus empréstimos LGFVs fossem reestruturados, de acordo com uma simulação histórica de estresse conduzida por Wang Jian, analista da Guosen Securities.

A maneira mais direta de reduzir a dívida seria a venda de ativos. No caso de Guizhou, especialistas sugeriram durante anos a venda ou penhora parcial de sua participação na Kweichow Moutai, a fabricante de bebidas alcoólicas mais valiosa do mundo, disse uma pessoa familiarizada com as negociações. Mas, apesar da pressão do governo central para a venda, os governos locais se mostraram relutantes.

"A suposição do governo central é que o ativo é mais do que suficiente para pagar a dívida, o que é verdade até certo ponto", disse Ivan Chung, diretor-gerente da Moody's Investors Service. "Mas é uma questão de quão rapidamente esses ativos podem ser transformados em dinheiro, especialmente nas províncias ocidentais mais fracas."

Esta relutância fala de uma tensão entre os governos locais e o central sobre o problema da dívida.

"A mentalidade subjacente [da resistência] é política", disse um importante banqueiro estatal que lida com a dívida do governo local de Guizhou. "Pontes e estradas são construídas em resposta aos apelos ao crescimento econômico e à redução da pobreza. Mas por que as localidades deveriam agora assumir todos os custos em nome do governo central?"

Numa declaração dirigida às autoridades locais, o Ministério das Finanças disse em fevereiro: "Se o bebê é seu, você é quem deve segurá-lo... O governo central não vai socorrê-lo".

Em maio, o departamento financeiro de Guiyang, capital da província, afirmou em comunicado que tinha "feito todo o possível" para lidar com sua dívida. A declaração foi posteriormente retirada do site da agência.

Em longo prazo, especialistas argumentam que o papel dos LGFVs na economia da China precisa ser fundamentalmente reformulado.

Numa apresentação ao primeiro-ministro Li em julho, Luo Zhiheng, analista macroeconômico-chefe da Yuekai Securities, disse que os governos locais deveriam reduzir seus gastos alimentados pela dívida e confiar mais nas receitas fiscais ou nos fundos do governo central para investimento. Isto estaria em linha com a tentativa da China de "reconstruir a base das receitas fiscais", disse Luo, conforme uma cópia da apresentação vista pelo Financial Times. Mais impostos sobre imóveis e renda pessoal poderiam ser implementados quando chegar a hora certa, disseram outros especialistas.

Outra solução é permitir que o governo central capte mais dinheiro. "Ainda há espaço para o governo central incorrer em déficits. Mas penso que é amplamente entendido pelos economistas na China como sendo a última 'munição' fiscal que o governo chinês tem", disse Shih.

O impacto da crise da dívida tem sido evidente nos serviços prestados pelos governos locais.

Na província de Heilongjiang, no extremo norte, os moradores tiveram dificuldades para aquecer suas casas no inverno, depois que os fornecedores locais de gás restringiram a oferta. As empresas culparam a falta de subsídios governamentais.

Na cidade de Zhangjiakou, na província de Hebei, onde foram realizados parte dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim em 2022, os orçamentos locais estão cada vez mais sobrecarregados.

Um funcionário público em Zhangjiakou, que pediu o anonimato porque não estava autorizado a falar com a imprensa, disse que não confiava mais em receber o pagamento. "Receber salário é como jogar dados", disse o servidor. "Você nunca sabe quanto receberá no próximo pagamento mensal."

A construção das pontes em Guizhou foi um processo que durou décadas. Desfazer a complexa rede de finanças locais também pode levar anos.

"O processo de limpeza provavelmente será caro e economicamente doloroso", disse Lo, do BNP Paribas. "É um processo de inadimplência controlado para eliminar ativos ruins e desalavancar o sistema, permitindo que mais LGFVs ruins vão à falência... enquanto os processos de reestruturação e redução da dívida avançam."

(Colaborou Edward White, em Seul)

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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