Lítio aquece economia de cidade do Jequitinhonha e deixa vida mais cara

Mineradora tem injetado milhões na região e criado programas sociais; mão de obra 'estrangeira' eleva custos

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Araçuaí e Itinga (MG)

Dizem que, para quem não tem nada, metade é o dobro. Em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, a região mais pobre de Minas Gerais, o cenário é justamente esse. Desde 2012, mas principalmente nos últimos dois anos, a cidade tem recebido grandes aportes da mineradora Sigma Lithium, fundada no Canadá e controlada pelo grupo de investidores A10, baseado em São Paulo.

A empresa é proprietária da mina Grota do Cirilo, onde está hoje a maior reserva de lítio do Brasil. A previsão mais rigorosa da empresa é que haja 27 milhões de toneladas de espodumênio na área, a rocha de onde se extrai o lítio usado para produção de baterias de carros elétricos. A empresa já investiu R$ 3 bilhões em seu projeto minerário.

Vista de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais
Vista de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais - Pedro Lovisi/Folhapress

Tais valores, ainda que não tenham chegado diretamente ao orçamento público, já afetam a realidade local. Das conversas dos moradores é comum, por exemplo, ouvir a história de alguém que queira vender sua propriedade para alguma mineradora de lítio. Segundo o governo estadual, há cinco empresas interessadas na região, incluindo a Sigma.

"Essa é a oportunidade de redenção financeira de uma família que mora em uma propriedade rural e vive de agricultura e pecuária de subsistência", diz Pedro Emílio, doutor em química da AlfaUnipac, universidade localizada no Vale do Jequitinhonha.

Segundo o Censo de 2010, 34% dos domicílios de Araçuaí eram rurais; ainda não há dados relativos ao Censo de 2022. Além disso, segundo o Ministério da Cidadania, Araçuaí tem 4.372 famílias no Bolsa Família —as duas cidades têm 34 mil e 14 mil pessoas, respectivamente.

No início de julho, a Sigma lançou o Instituto Lítio Verde, que pretende injetar R$ 500 milhões em programas sociais na região. Um dos beneficiados é Jurandir Alves, 53, que, como outros produtores rurais, ganhou da empresa um reservatório natural de água. A obra vai facilitar a irrigação das rosas do deserto que ele planta. A região é marcada por longos períodos de seca.

Mas nem tudo são flores: donos de residências urbanas têm pedido seus imóveis de volta e aumentado o valor do aluguel. Segundo moradores, os preços cobrados hoje no centro de Araçuaí superam os R$ 1.000 —em 2019, giravam em torno de R$ 300. "Há famílias que estão sendo despejadas de suas casas porque o aluguel subiu para um valor que elas não têm condições de pagar. Elas precisam, urgentemente, ser inseridas no programa Minha Casa, Minha Vida", diz Daniel Sucupira (PT), presidente da Frente Mineira de Prefeitos.

O prefeito de Araçuaí, Tadeu Barbosa de Oliveira (PSD), planeja ir a Brasília nos próximos dias conversar com o governo federal sobre o assunto.

A Folha ligou para uma mulher que tentava alugar uma casa de 70 m² com três quartos por R$ 2.000. "Só preciso confirmar se outro moço que trabalha para uma mineradora vai querer alugar", disse ela à reportagem.

Com os hotéis acontece o mesmo. A cidade tem hoje cerca de cinco pousadas, sendo que a mais barata custa R$ 80 (o quarto com ar-condicionado é R$ 100). Já o hotel mais caro cobra R$ 200 por dia —isso quando tem vaga. Em comparação, uma diária do Ibis Budget próximo à avenida Paulista, em São Paulo, custa R$ 250.

"Hoje, já há momentos em que não há vagas nas pousadas de Araçuaí. Tem gente que pensa que isso é bom, mas eu penso de outra maneira: se as pousadas e hotéis estão lotados, é porque os trabalhadores estão vindo de fora da região", questiona o deputado estadual doutor Jean Freire (PT).

Ele está certo. Grande parte dos funcionários da Sigma vem de fora do Vale do Jequitinhonha; principalmente a chefia. Uma das razões é a falta de mão de obra na região: como acontece em todo lugar pobre, muitos jovens ao concluírem o ensino médio precisam escolher entre trabalhar ou cursar o ensino superior; na maioria, a escolha é a primeira opção.

É o que aconteceu com um jovem de 19 anos com quem a Folha conversou. Ele mora em uma comunidade pobre a cerca de 25 quilômetros do centro de Itinga. Recentemente precisou escolher se continuava o curso de geologia ou se focava o trabalho com carteira assinada que conseguira na Sigma. A opção, naturalmente, foi a segunda.

O mesmo acontece na Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri, onde a evasão de alunos em cursos relacionados à mineração é alta.

Até por isso, a mineradora lançou nos últimos anos o projeto Volta ao Lar, que busca atrair para o Vale do Jequitinhonha profissionais que em algum momento precisaram sair da região para conseguir emprego.

É o caso de Kessiane Lima Silva, 40, atual gerente de geologia da mineradora. Ela se mudou para Belo Horizonte no início dos anos 2000 para cursar geologia na Universidade Federal de Minas Gerais. Depois de se formar, trabalhou em mineradoras no Pará, Amazonas e Amapá, e foi chamada para trabalhar na Sigma em 2017.

Já o auxiliar de geologia Ismael Santos, 35, aproveitou a chegada da Sigma para largar a profissão de cortador de cana-de-açúcar no interior de São Paulo. Como milhares de homens do Vale do Jequitinhonha, ele ficava sete meses por ano trabalhando em usinas de Araçatuba e Valparaíso. Tal deslocamento gerou, por muitos anos, as "viúvas de maridos vivos" –nome dado àquelas mulheres que, do Jequitinhonha, eram abandonadas por seus esposos.

"Minha vida melhorou muito financeiramente, porque, quando eu tinha que sair para São Paulo, gastava muito. Então, quando voltava, trazia pouco. Agora a despesa é menor", diz.

A vida financeira melhorou também para as 600 mulheres de Araçuaí e Itinga que se inscreveram no programa Dona de Mim, organizado pela Sigma junto com o grupo Mulheres do Brasil, liderado por empreendedoras conhecidas, como a dona do Magazine Luiza, Luiza Trajano. O programa concede R$ 2.000 a mulheres que queiram empreender, sob juros de 6% ao ano (valor similar ao rendimento da poupança).

"Eu peguei esses R$ 2.000 para comprar uma máquina e, depois disso, a minha vida melhorou muito. Às vezes, a gente fica só por conta dos esposos, e, ao pedirmos dinheiro para comprar um absorvente, por exemplo, eles já dizem que estamos gastando muito. Então agora a gente tem uma maior independência financeira", diz Cida Aguilar, 55, fabricante de personalizados. "Eu tenho até medo de acordar."

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