Descrição de chapéu África

Como é viver num país dolarizado? Histórias de cidadãos do Zimbábue e do Equador

Moeda americana foi adotada para garantir estabilidade econômica; presidente eleito da Argentina promete fazer o mesmo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tito Correa Nyasha Chingono Miguel Lo Bianco
Harare, Quito e Buenos Aires | Reuters

De Harare, capital do Zimbábue, a Quito, no Equador, as notas verdes que circulam nas ruas e nas lojas com imagens de presidentes dos Estados Unidos refletem uma grande escolha que foi feita —o dólar em vez da moeda local para garantir estabilidade econômica.

Os dois países oferecem uma lição —e alertas— para a Argentina, a mais recente nação do mundo a flertar com a ideia de abandonar uma moeda local em apuros em favor do dólar, uma promessa de campanha do presidente eleito Javier Milei.

A dolarização ou a opção parcial de atrelamento ao dólar em geral é acionada como uma última opção para domar a hiperinflação e a perda de confiança na moeda local, como foi o caso na década de 1990 com o Equador e em El Salvador após a guerra civil.

Cartaz em loja de sapatos de Buenos Aires avisa que aceita dólares como forma de pagamento - Agustin Marcarian - 21.nov.2023/Reuters

Na Argentina, o autodenominado anarcocapitalista Milei, eleito presidente no domingo, vê a dolarização como uma forma de conter a inflação que está chegando a 150% e que levou quatro em cada dez pessoas à pobreza.

O Zimbábue abandonou sua moeda em 2009 para combater a hiperinflação, optando por um sistema de várias moedas centrado no dólar norte-americano. O governo reintroduziu a moeda local em 2019, mas ela perdeu valor rapidamente. Atualmente, a maioria das transações é feita em dólares.

A história da dolarização do Zimbábue é tão cheia de alertas quanto de promessas. Muitas pessoas viram suas economias serem apagadas quando o dólar foi adotado em 2009.

"Simplesmente acordamos e não havia mais nada na conta", disse a bancária Bongiwe Mudau, 47, à Reuters. "Isso incluía meu seguro de vida e assistência médica. Tudo desapareceu em apenas um dia. A dolarização acabou com tudo o que eu havia economizado."

A mãe de três filhos disse, no entanto, que a dolarização acabou trazendo estabilidade aos preços. Após 2008, quando os preços dobravam quase todos os dias —uma das maiores hiperinflações já registradas—, os preços caíram 7,7% em 2009, de acordo com o Fundo Monetário Internacional.

Doleira verifica cédulas de dólar em comércio de Harare, capital do Zimbábue - Philimon Bulawayo - 26.nov.2020/Reuters

"Pela primeira vez em muitos anos, pude fazer meu orçamento com a certeza de que os preços não mudariam. Tínhamos uma aparência de ordem na economia", disse Mudau.

O Zimbábue está planejando permanecer dolarizado até 2030, criando estabilidade nos mercados —e nas ruas.

Moses Mhlanga, 50, um vendedor ambulante de Harare que vende doces e salgadinhos, disse que a obtenção de dólares é difícil para alguns trabalhadores informais, mas que está melhorando.

"Não havia fonte de dólares para alguns de nós. Tínhamos que procurar por eles. Era difícil. As coisas estão começando a mudar agora porque estamos acostumados com a moeda e podemos encontrá-la em qualquer lugar", disse o pai de cinco filhos.

No entanto, há uma escassez de notas de valor baixo —o que não é incomum em economias favoráveis ao dólar, porque o transporte dessas notas é caro. Isso significa alguma perda de receita.

"Isso dificulta a realização de transações, especialmente nas ruas. Perdemos clientes porque não há troco", disse Mhlanga.

"SINTO MUITA FALTA DAQUELA ÉPOCA"

A própria Argentina impôs uma paridade de 1 para 1 entre o peso e o dólar durante a maior parte da década de 1990, com um conselho monetário e conversibilidade. Isso reduziu rapidamente a inflação elevada, mas a experiência acabou fracassando, pois os desequilíbrios econômicos tornaram a paridade insustentável.

Com o declínio da economia, o governo entrou em pânico e impôs o que ficou conhecido localmente como "corralito", impedindo que as pessoas tivessem acesso às poupanças ou convertendo à força os depósitos em dólares para pesos, provocando semanas de tumultos em 2001-02, instabilidade política e a pior crise econômica da história recente do país.

Essa experiência deixou os argentinos desconfiados em relação ao peso e ao sistema bancário local. Os poupadores guardaram centenas de bilhões de dólares fora do país ou debaixo do colchão.

Entretanto, aquela década passada de inflação baixa está começando a parecer mais atraente novamente à medida que os preços se aceleram —um fator que ajudou a impulsionar a vitória de Milei.

"Venho de uma época em que vi a conversibilidade. Para mim, foram 10 anos de paz econômica que nos permitiram planejar, desenvolver e trabalhar", disse Nestor Cerneaz, 57, morador de Buenos Aires.

"Era possível economizar e comprar um apartamento. Sinto muita falta daquela época."

Desde sua eleição, Milei tem minimizado sua capacidade de dolarizar rapidamente a economia, citando a falta de moeda estrangeira, altos índices de pobreza e um profundo déficit fiscal. Ele também tem uma posição fraca no Congresso, um obstáculo para a aprovação de leis.

"A MELHOR SOLUÇÃO PARA NÓS"

No entanto, talvez seja a experiência do Equador em controlar a inflação que possa servir como o melhor modelo para a Argentina.

Durante os cinco anos que antecederam a dolarização em 2000, a medida mensal da inflação anualizada foi em média de 33% no Equador. Após a dolarização, ela caiu rapidamente. A inflação mensal anualizada nos últimos 10 anos ficou em média em 1,54%.

"Foi a melhor solução para nós em um momento em que o Equador estava economicamente em uma situação ruim", disse o aposentado Wilson Andrade, 72, nas ruas de Quito.

"Com nossa moeda local, não podíamos comprar nada, era muito caro adquirir coisas, então a dolarização permitiu que as pessoas tivessem mais segurança em suas compras."

Há, é claro, desvantagens. A dolarização limita a capacidade de um país de controlar sua própria política monetária. A desvalorização, que pode ser usada para controlar os desequilíbrios comerciais, é impossível com a dolarização.

Com uma economia cinco vezes maior do que a do Equador e uma dependência de exportações de commodities como soja, milho e trigo, que se tornaram mais competitivas com um peso mais fraco, a manobra pode ser mais difícil de ser realizada na Argentina.

Mas o dólar oferece a tão necessária estabilidade.

Juan Carlos Villota, um mecânico de 37 anos, disse que uma série de desvalorizações no final dos anos 1990 provocou a emigração e causou muito sofrimento às famílias equatorianas. Ele apoiou a dolarização como uma forma de controlar a volatilidade econômica.

"A verdade é que foi um bom processo para termos estabilidade econômica", disse ele.

Vegetais em feira de Quito, capital do Equador, com preços em dólar - Karen Toro - 20.nov.2023/Reuters

Nem todos os argentinos estão convencidos. Dos 125 empresários argentinos entrevistados pela Reuters no mês passado, apenas dois apoiaram a dolarização total. Dois terços defenderam um sistema duplo de peso-dólar.

Nas ruas de Buenos Aires, o advogado Guido Puig, 36, não gosta da perda de autonomia que seria causada pela adoção da moeda de outro país.

"Já tivemos essa experiência aqui e ela foi prejudicial para nós em um contexto internacional nos anos 1990", disse ele. "Acho que a dolarização não é boa."

Reportagem adicional de Rodrigo Campos em Nova York

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.