'Não tenho a cara de um servidor da área econômica', diz analista do Planejamento

Para Clara Marinho, mais mulheres negras precisam conseguir ver uma possibilidade de carreira no serviço público

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São Paulo

Clara Marinho, 39, ainda tem poucos espelhos na administração pública. Mulher, negra e nordestina, ela decidiu que se tornaria servidora ainda na faculdade e hoje busca usar a indignação com a discriminação racial e de gênero como motor para atuar no Ministério do Planejamento.

Ingressante no serviço público por meio da política de cotas, a analista se dedica, entre outras atividades, a fazer com que recursos do Orçamento sejam endereçados a programas de redução das desigualdades.

A servidora do Ministério do Planejamento Clara Marinho
A servidora do Ministério do Planejamento Clara Marinho - Pedro Ladeira/Folhapress

Ela, que ajudou a idealizar a iniciativa "Elas no Orçamento", para democratizar a tomada de decisão na política econômica, foi incluída em 2021 na lista dos cem afrodescendentes mais influentes do mundo com menos de 40 anos, uma iniciativa da ONU (Organização das Nações Unidas), na categoria "ativismo e humanitário".

"Sou de Salvador, fiz administração na UFBA [Universidade Federal da Bahia] e com 22 anos fui para a Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] fazer mestrado com ênfase em economia associada ao trabalho.

Depois vim para Brasília, passei pela secretaria que deu origem ao Ministério da Igualdade Racial e há seis anos sou servidora da pasta do Planejamento e Orçamento.

Ingressei no último concurso da carreira pelo mecanismo das cotas raciais e estou fazendo doutorado na FGV [Fundação Getulio Vargas], em São Paulo, consigo exercer a minha função, remotamente e presencialmente. Diretora substituta de Temas Transversais, cuido de temáticas como primeira infância, igualdade racial, entre outras.

Desde o início da gestão, a ministra Simone Tebet tem buscado que a equipe seja a mais paritária possível. A chefe da minha área também é uma mulher.

A minha trajetória no serviço público começa por uma política de articulação, de promoção da igualdade racial e do enfrentamento do racismo, e esse é uma lente que utilizo em meu trabalho.

O Brasil é um país de maioria negra, originária da escravização, é algo que eu gosto de fazer sobre e que enriquece a política pública.

Fui uma estudante de ensino médio em uma escola pública e no fim, tem muita política pública associada à minha trajetória. Tem um componente individual, mas tem essa base coletiva que me acompanha.

Sempre quis ser servidora. Quando estava na graduação, os meus colegas já falavam sobre isso e fui encaminhando a minha carreira para isso.

A política pública é essencialmente um trabalho coletivo e queria estar em grupo pensando em novas possibilidades, me sinto vocacionada e sinto nos servidores da minha geração esse propósito de transformação social.

A representatividade no serviço público importa. Olhando para trajetórias como a minha, é possível que outras meninas e mulheres consigam ver uma possibilidade de carreira, as mulheres são o maior grupo demográfico. Quando uma menina vê uma ministra de Estado, ela pode ver que é possível ser alguém que contribui para o país.

Ao mesmo tempo, não tenho exatamente a cara de um servidor da área econômica, são poucas mulheres e elas geralmente são as 'mãos' do Estado —estão na educação, no serviço social, no posto de saúde. A gente está acostumado a ter mulheres na área de cuidados.

É preciso assinalar essas diferenças, não tenho a cara de quem toma decisões de políticas econômicas. Mas as medidas que têm sido tomadas recentemente podem alterar esse estado de coisas, a gente tem a perspectiva de envio para o Congresso da renovação da lei cotas para o serviço público e um decreto para democratizar a tomada de decisão por toda a Esplanada.

Se tem uma contribuição específica que posso trazer é no esforço de considerar a desigualdade racial e de gênero como aspecto fundamental a ser endereçado na intervenção pública. Minha formação permite que eu possa fazer esse tipo de contribuição, assim como pessoas não negras e não mulheres poderiam fazer.

Racismo e sexismo não são invenções nem de pessoas negras nem de mulheres, me engajo na resolução desses problemas de forma republicana, assim como espero que qualquer outro servidor faça o mesmo.

O Orçamento é uma peça técnica e política, a sua linguagem exige uma imersão, não é fácil para o cidadão comum se apropriar desse tipo de conhecimento com rapidez. Eu me considero uma aprendiz sobre o assunto, quis continuar estudando para fazer uma reflexão sobre o Orçamento e que essa reflexão seja pública.

Nosso desafio é traduzir o Orçamento cada vez mais para uma linguagem simples, e o Ministério tem se envolvido nesse tipo de esforço. Talvez a lente que a gente olhe para aproximá-lo das pessoas também seja técnica, as pessoas sabem o que acontece na porta da casa delas, talvez o que a gente ainda precise fazer é um esforço de linguagem, uma tradução mais completa, para ajudar na aproximação. A população entende do Orçamento, mas sob uma outra perspectiva.

Por mais que o convite da ONU tenha sido um reconhecimento, tive dificuldade de me apropriar desse espaço, acho que tem a ver com essa questão de gênero. As mulheres estão acostumadas a esse papel de dar condições para que as coisas aconteçam, mas têm dificuldade com o papel de protagonista desses processos. Tenho buscado trabalhar nessa chave do reconhecimento. No fim, acabei me sentido motivada para fazer mais coisas por aí.

Colocando meu chapéu de mãe de duas crianças pequenas, quando penso em como gostaria de ver a minha carreira no futuro, a primeira coisa que me vem é um número maior de mulheres e mulheres negras em posições de decisão de políticas públicas, permitir que outros grupos populacionais participem, também incluindo indígenas.

Gostaria de ver o resultado de políticas na melhoria da população brasileira, em geral, e de negros e indígenas em particular e enxergar a minha contribuição em tudo isso. Também quero ver mais ministras mulheres, a gente ainda pouco se vê no serviço público, tenho poucos espelhos. Não quero concluir a minha carreira lá na frente e ainda me sentir isolada."

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