Províncias argentinas que optaram por Milei dependem do comércio com Brasil e China

Países entraram na mira de ultraliberal, que chamou Lula de 'comunista' e apontou falta de liberdade do povo chinês

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São Paulo

O Brasil e a China estão entre os principais parceiros comerciais da Argentina, mas foram alvo de críticas e ataques do presidente eleito, Javier Milei, desde o começo da campanha até o fim do segundo turno, no domingo (19), quando o libertário derrotou o atual ministro da Economia, Sergio Massa.

Só que parte das províncias que ajudaram a definir a eleição em favor dele depende justamente do comércio com os países que ele mais critica.

Um trabalhador coloca cola nas solas dos sapatos em uma fábrica de calçados, enquanto pequenas e médias empresas enfrentam dificuldades em meio ao aumento da inflação, nos arredores de Buenos Aires
Trabalhador em fábrica na província de Buenos Aires - Mariana Nedelcu - 17.mai.23/Reuters

Sobre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Milei já disse que ele era "comunista", "corrupto" e "ladrão". Além de receber o apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de seu filho Eduardo durante a disputa, Milei convidou o ex-mandatário para a cerimônia de posse, em dezembro.

No último debate eleitoral, o libertário mencionou a participação de marqueteiros brasileiros na campanha de Massa. Ele também afirmou que suas posições não iriam prejudicar as relações comerciais entre os países, e que as empresas são livres para comercializar com quem quiserem.

"Eu não tenho de gostar do presidente do Chile, da Argentina, da Venezuela... Ele não tem de ser meu amigo, tem de ser presidente do país dele e eu tenho de ser presidente do meu país", disse Lula na terça-feira (21), sem citar Milei.

Também na terça, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República divulgou comunicado dizendo que Brasil e Argentina mantêm uma relação amistosa de cooperação e colaboração em diferentes projetos.

Questionado durante a campanha, o ultraliberal chegou a dizer em entrevistas que o comércio com esses países era um assunto privado, e que a relação entre governos não afetaria os negócios.

O Brasil é o principal destino das exportações argentinas, representando 14,3% das vendas daquele país, seguido por China (9%) e Estados Unidos (7,6%), segundo dados nacionais.

De janeiro a outubro, os principais produtos comprados da Argentina foram automóveis, veículos a diesel, óleos brutos de petróleo e trigo.

Ao mesmo tempo, o Brasil é menos dependente do país vizinho, que é o terceiro principal comprador de seus produtos (5,27%) —mas o país é um grande comprador de manufaturados brasileiros, e um parceiro importante para a indústria nacional.

As investidas de Milei não mudaram a intenção de votos em províncias que dependem de uma boa relação com esses parceiros comerciais.

Em Córdoba, província profundamente antiperonista e onde o opositor obteve 74,1% dos votos, o Brasil é o principal cliente dos produtos argentinos. Além de veículos, a região se destaca pela venda de milho e soja, segundo dados da Bolsa de Comércio de Rosário.

Desde a eleição de 2015, em que Córdoba deu vitória a Mauricio Macri ante o atual embaixador no Brasil, Daniel Scioli, Massa sabia que a batalha entre os cordobeses estava perdida, restando ao ministro diminuir a diferença de votos.

Para isso, um dos apelos usados por ele durante a campanha foi dizer aos eleitores que as críticas de Milei a Lula atrapalhariam as exportações ao Brasil, colocando, inclusive, em risco a continuidade de fábricas de veículos na região, caso houvesse um desgaste nessa relação.

A província de Santa Fé, responsável por 23% das exportações do país, tem a Índia como principal destino (10,9%), mas que é seguida de perto por China (7,7%) e Brasil (6,8%). Lá, Milei ganhou com quase 63%.

O Brasil é o principal destino das exportações de Mendoza, que tem nos vinhos, nos materiais plásticos e nos combustíveis seus principais produtos. Na província, o peronismo acabou terminando a eleição com 29,9% dos votos ante 71,1% de Milei.

Na província de Buenos Aires (que não inclui a capital federal), a vitória foi de Massa, mas a eleição terminou quase em empate entre os dois. Ela, que tem peso de 36% nas exportações nacionais, tem o Brasil como principal destino, sobretudo de veículos.

Nos últimos meses, a economista e deputada eleita Diana Mondino, cotada para as Relações Exteriores no novo governo, repetiu que o país não iria promover relações com o Brasil e a China.

"Vamos parar de interagir com esses governos", disse em entrevista a uma agência de notícias russa após a eleição.

Antes de ser eleito, o libertário também chegou a defender a saída da Argentina do Mercosul (que também reúne Brasil, Uruguai e Paraguai), mas depois recuou e passou a sugerir apenas mudanças no bloco.

Milei afirmou em diferentes oportunidades que o governo chinês era "assassino" e que a população "não era livre".

Do comércio com a China dependem províncias que deram vitória ao libertário, como Catamarca, Entre Ríos, La Pampa e San Luís —sobretudo na venda de grãos e carne.

FALAS DE MILEI NÃO DEVEM SE TRADUZIR EM AÇÕES, DIZEM ESPECIALISTAS

Milei tem características que lembram tanto Bolsonaro quanto o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, diz o ex-secretário de Comércio Exterior Welber Barral.

"Ele morde e alguém vai lá e assopra. Quando assumir o governo, esse plano de sair do Mercosul não deve ocorrer. O setor privado e o grupo do Macri não vão deixar."

Ele lembra que o comércio depende, sim, de uma relação positiva entre os países, ao contrário do que diz o novo presidente da Argentina. "A gente viu com Bolsonaro e China, tivemos desistências de investimentos, depende de licenças, de certificações, de licenciamento."

"A Argentina é o principal destino de manufaturados do Brasil e entre eles se destaca o de peças e automóveis e também exporta muitos veículos para o Brasil. São as mesmas empresas de ambos os lados e elas não vão permitir que as relações sejam rompidas", acrescenta Barral, que é sócio da consultoria BMJ, que abriu um escritório em Buenos Aires em agosto.

Para o presidente da AEB (Associação de Comércio Exterior do Brasil), José Augusto de Castro, caso a Argentina saia do Mercosul isso poderia significar o fim do bloco, e prejudicaria a presença do Brasil no comércio internacional e no acordo com a União Europeia.

"O bloco ficaria pequeno sem ela, a não ser que a União Europeia tenha algum interesse político de fazer o acordo e isso daria força para os europeus colocarem mais barreiras. Ainda é cedo para avaliar, mas o setor vê tudo isso com muita preocupação."

Ele acrescenta que, apesar de as relações comerciais se darem entre empresas, é fundamental que os países não deixem que as diferenças ideológicas atrapalhem.

"Não manter boas relações com Brasil e China é falta de inteligência. Eles não têm outro mercado além da China para vender soja, e dependem do Brasil para vender automóveis. O Brasil também passou por isso recentemente, pesou nas críticas à China, algo que não nos ajudou", diz.

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