Califórnia cobra imposto sobre água no campo, faz agricultura prosperar e reacende debate

Se fosse replicada em todo os EUA, medida causaria mudanças na economia que afetariam agricultores e consumidores

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Coral Davenport
Watsonville (EUA) | The New York Times

As plantações de morango, amora e framboesa do Vale do Pajaro, que se estendem por 16 quilômetros ao longo da costa da Baía de Monterey, na Califórnia, ficam repletos de frutas de abril ao início de dezembro.

Os cerca de 12 mil hectares de terras agrícolas também são adornados por alfaces de um verde-esmeralda, couves-de-bruxelas e algumas variedades de couve-crespa, contribuindo para uma receita de cerca de US$ 1 bilhão anualmente na região.

Mas toda essa abundância tem seu preço. Enquanto os agricultores americanos em outras localidades regam suas plantações gratuitamente por intermédio da extração de água subterrânea sob suas terras, os de Pajaro devem pagar quantias consideráveis pelos recursos hídricos para irrigação —tornando o lugar um dos mais caros do país, se não do mundo, para a produção de alimentos.

Plantação de morango no Vale do Pajaro, na Califórnia, nos EUA
Plantação de morango no Vale do Pajaro, na Califórnia, nos EUA - Nathan Weyland - 23.dez.2023/The New York Times

O custo chega a até US$ 400 por 1.233 metros cúbicos, medida padrão de volume. Essas taxas totalizam US$ 12 milhões por ano, usados para reciclar, recuperar e preservar a água subterrânea da região.

O sistema incomum do Vale do Pajaro —essencialmente, um imposto sobre a água— se originou de um desastre que atingiu o cultivo de frutas vermelhas, há cerca de 40 anos, forçando os agricultores a tomar medidas.

Atualmente, enquanto o país enfrenta uma crise crescente de diminuição das águas subterrâneas em decorrência da combinação de mudanças climáticas, extração excessiva por parte dos agricultores e outras circunstâncias, alguns especialistas afirmam que o Vale do Pajaro é um modelo de como preservar esse recurso vital.

Embora poucas regiões tenham instituído taxas sobre a água subterrânea para a agricultura, o Vale do Pajaro tem sido um dos mais firmes e eficazes.

"Eles estão na vanguarda, fazendo algo inovador", disse Felicia Marcus, ex-presidente do Conselho de Controle de Recursos Hídricos do Estado da Califórnia e atual pesquisadora do Programa Água no Oeste, da Universidade Stanford.

Especialistas de outros locais distantes, como a China e o Egito, estão visitando o vale para estudar o sistema, mas sua replicação em outros lugares pode trazer desafios significativos.

"Para começar, as pessoas não gostam de impostos, o que não é nenhuma novidade", comentou Nicholas Brozovic, economista especializado em agricultura da Universidade de Nebraska.

Novas pesquisas sobre o programa encontraram uma ligação direta entre o pagamento pela água subterrânea e sua preservação: um aumento de 20% no preço da água subterrânea resultou em uma diminuição de 20% na sua extração.

Uma das razões pelas quais os especialistas veem o Vale do Pajaro como um modelo: mesmo com o alto preço da água, a agricultura da região está prosperando —e é sede de importantes marcas, como a Driscoll's, maior fornecedora de frutas vermelhas do mundo inteiro, e a Martinelli's, empresa que cultiva a maior parte das maçãs para sua sidra espumante no Vale do Pajaro.

Soren Bjorn, alto executivo da Driscoll's que se tornará CEO neste mês, afirmou em entrevista que "sem dúvida" considera essa região como um modelo de cobrança de água que poderia ser reproduzido em áreas em que o recurso é escasso, do Texas a Portugal.

"A água não pode ser gratuita em lugar algum, porque não é possível gerenciar um suprimento de forma sustentável sem cobrar por ela. Isso se aplica ao mundo inteiro", disse.

Soren Bjorn, alto executivo da Driscoll's que se tornará CEO neste mês
Soren Bjorn, alto executivo da Driscoll's que se tornará CEO neste mês - Nathan Weyland - 22.dez.2023/The New York Times

Mas se o experimento do Vale do Pajaro fosse replicado em todo o país, desencadearia mudanças na economia que afetariam os agricultores e os consumidores, resultando em preços mais altos nos supermercados e fazendo com que os agricultores abandonassem cultivos básicos de baixo custo, necessários para forragem e outros usos, como os têxteis.

Embora os produtores corporativos de produtos de alta qualidade —como as frutas vermelhas, que são enviadas para prateleiras de grandes redes, como a Whole Foods, a Safeway e a Trader Joe's— possam arcar com o preço da água do Vale do Pajaro, os agricultores de cultivos básicos, como o algodão, a alfafa e a soja, não têm como obter lucro, observou David Sanford, comissário de agricultura do condado de Santa Cruz, onde está localizado o Vale do Pajaro.

Nos anos seguintes à taxação da água, os agricultores desses cultivos migraram para alfaces e frutas vermelhas, que têm alto valor, ou simplesmente migraram para outras regiões de cultivo mais baratas.

"Há um grande argumento de política pública para cobrar pela água subterrânea. Mas, se tentássemos algo assim em todo o país, isso faria com que os agricultores abandonassem culturas, como o milho, ou até mesmo deixassem a agricultura por completo. De qualquer perspectiva, é provável que o preço dos alimentos aumente. Por outro lado, a alternativa é a escassez de água", explicou Louis Preonas, economista especializado em agricultura da Universidade de Maryland.

Uma investigação do New York Times do ano passado revelou que muitos aquíferos, que fornecem 90% dos sistemas de água potável dos Estados Unidos, estão se esgotando drasticamente em consequência de uma combinação de mudanças climáticas e extração excessiva por agricultores, consumidores industriais e cidades, entre outros.

A hora da verdade em relação à perda de água subterrânea está se aproximando rapidamente para muitas regiões agrícolas do país. No Vale do Pajaro, chegou há 40 anos.

Com seu solo argiloso e arenoso e os ventos noturnos frios, a costa de Monterey possui um clima ideal para o morango.

Mas, na década de 1980, houve um desastre. Os agricultores extraíram excessivamente as águas subterrâneas costeiras, permitindo que a água salgada do Oceano Pacífico se infiltrasse sob suas terras e chegasse às raízes dos frutos.

"Podíamos ver as folhas amareladas, a descoloração e o atraso no crescimento", lembrou Dick Peixoto, cuja família se dedica à agricultura aqui desde 1920.

Diante de um desastre econômico, Peixoto e outros agricultores formaram uma agência local de água com dois objetivos: conservar os recursos hídricos subterrâneos e evitar que o Estado assumisse o controle.

Foi assim que teve início a Agência de Gerenciamento de Água do Vale de Pajaro, cuja administração permanece no local.

Seu primeiro projeto foi instalar medidores para acompanhar a quantidade de água subterrânea usada pelos agricultores. Em 1993, o órgão começou a cobrar deles a modesta quantia de US$ 30 por 1.233 metros cúbicos para cobrir os custos administrativos e da leitura dos medidores.

Hidrólogos e outros consultores foram contratados pela entidade, e estes concluíram que o aquífero estava severamente esgotado e corria o risco de se transformar totalmente em água salgada.

Em resposta, a agência construiu um projeto de US$ 6 milhões para captar e desviar o excesso de água da chuva de um córrego próximo ao oceano e bombeá-la para um reservatório, no qual é filtrada e vai para poços subterrâneos, onde é finalmente usada na irrigação.

Depois, foi construída uma usina de reciclagem de água de US$ 20 milhões, que limpa diariamente cerca de 19 milhões de litros de águas residuais que são enviados para os campos por uma rede de tubos roxos —a cor roxa indica que a água que flui ali é reciclada.

Atualmente, a agência está construindo um sistema de US$ 80 milhões para captar e armazenar mais água da chuva e utilizá-la na irrigação.

Parte do custo dos projetos da entidade tem sido coberta por empréstimos e subsídios federais, e o restante pelo sistema de taxação da água subterrânea, explicou Brian Lockwood, gerente-geral da Agência de Gerenciamento de Água do Vale de Pajaro há 18 anos.

"Esses projetos custam milhões de dólares e, sem essa fonte de receita, nunca poderíamos concretizá-los."

Brian Lockwood, que há 18 anos é gerente geral da Agência de Gestão Hídrica de Pajaro Valley, na Califórnia, 22 de dezembro de 2023. (Nathan Weyland/The New York Times)
Brian Lockwood, que há 18 anos é gerente geral da Agência de Gestão Hídrica de Pajaro Valley, na Califórnia - Nathan Weyland - 22.dez.2023/The New York Times

Conforme os objetivos da agência cresceram, o preço da água também aumentou. Prevê-se que até 2025 chegue a US$ 500 por 1.233 metros cúbicos.

Nos primeiros anos, os agricultores se irritaram com os aumentos das taxas. "Cobrar pela água foi realmente difícil, porque costumava ser gratuita", comentou Thomas Broz, que cultiva cerca de 30 hectares no Vale do Pajaro desde 1996.

Depois, um grupo de agricultores processou a agência nos tribunais e conseguiu reduzir os preços durante alguns anos, obrigando-a até a reembolsá-los em cerca de US$ 12 milhões entre 2008 e 2011.

Mas, de 2012 a 2017, a Califórnia passou pela pior seca de sua história: as terras agrícolas secaram e a economia rural foi devastada.

Os agricultores em todo o estado, especialmente os do Vale Central, concordaram em restringir drasticamente o uso da água e deixar descansar suas terras. A água ficou mais cara no Vale do Pajaro, mas pelo menos continuou fluindo.

Para economizar dinheiro, muitos agricultores investiram em tecnologia de irrigação de precisão para distribuir cuidadosamente a água exatamente onde era necessária. Há muito se acabou a época dos sprinklers que molhavam os campos indiscriminadamente.

No meio da seca, o então governador da Califórnia, Jerry Brown, assinou uma lei exigindo que cada parte do estado elaborasse um plano para conservar a água subterrânea. Miles Reiter, CEO da Driscoll's prestes a se aposentar, expressou apoio à legislação. De repente, o Vale do Pajaro se tornou um modelo.

Sede da Driscoll no centro da região de cultivo da fruta, em Watsonville, na Califórnia, em 22 de dezembro de 2023. (Nathan Weyland/The New York Times)
Sede da Driscoll no centro da região de cultivo da fruta, em Watsonville, na Califórnia - Nathan Weyland - 22.dez.2023/The New York Times

Broz, que cultiva alface, frutas vermelhas, maçã e outros vegetais, e que no ano passado pagou US$ 20 mil pela água, disse que acabou aceitando o sistema.

"O agricultor tem muito pouco espaço para absorver o custo da água, por isso temos de repassá-lo para nosso produto, o que significa que não podemos ser tão competitivos. Mas cobrar pela água nos permitiu implantar medidas que, se quisermos preservar esse recurso, vão nos ajudar a ter um sistema sustentável em longo prazo."

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