Classe média americana vê maior salto no patrimônio em 30 anos

Ganhos relativos foram ainda maiores para negros e hispânicos

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Washington

Em mais uma leva de boas notícias sobre a economia americana, o patrimônio líquido da classe média do país disparou na pandemia, alcançando o maior ganho em 30 anos —e indicando uma redução da disparidade no país nesse indicador.

O cenário mais otimista do que o que se esperava quando a crise sanitária eclodiu se soma a outros estudos que têm questionado a leitura de que a desigualdade social nos EUA vem crescendo nos últimos anos —e torna ainda mais complexo entender a percepção predominantemente negativa sobre a economia hoje.

Casa em construção em Lemont, no Illinois, em junho - Getty Images via AFP

De acordo com a Pesquisa de Finanças do Consumidor do Fed, o banco central americano, o patrimônio líquido (os ativos, como um imóvel, menos as dívidas) subiu 37% entre 2019 e 2022 para as famílias exatamente no meio da pirâmide, indicador conhecido como mediana.

O número é diferente da média, que resulta da divisão da soma total pelo número total de residências —nesse caso, o aumento foi de 23%. Todos os cálculos descontam a inflação.

Voltando à mediana, a liderança do crescimento ficou com as famílias negras, com alta de 60%, seguidas por hispânicas (31%). Famílias brancas observaram o menor aumento (20%).

Os ganhos também foram proporcionalmente maiores entre quem tem menos: considerando o um quarto da população com menor patrimônio, o aumento foi, na média, de 66%. Já nos 10% do topo, ele foi bem menor, de 18%.

O levantamento trienal, realizado desde 1989 pelo Fed, é considerado o melhor diagnóstico do orçamento familiar dos EUA, e sua versão mais recente é a primeira a captar os efeitos da pandemia na economia familiar.

Durante a crise sanitária, as projeções apontavam para um aumento generalizado da desigualdade, com os mais pobres amargando desemprego e falta de uma poupança à qual recorrer, enquanto os mais ricos viram seus ganhos subirem com o boom do mercado financeiro.

A pesquisa do Fed, no entanto, mostra um quadro diferente, explicado por dois fatores principais: a valorização dos imóveis —duas em cada três famílias americanas são proprietárias— e uma alta no número de pessoas que possuem ações.

O valor mediano real de um imóvel subiu de US$ 139,1 mil em 2019 para US$ 201 mil em 2022 (descontadas hipotecas), atingindo níveis recordes na série histórica do Fed. No mesmo período, o percentual de famílias detentoras de ações subiu de 15% para 21%, a maior alta já registrada na pesquisa.

No lado dos passivos da conta, o endividamento no cartão de crédito caiu, e a alavancagem das famílias atingiu o menor nível em 20 anos.

Em termos absolutos, a diferença segue enorme: o patrimônio líquido dos 25% com menos foi de US$ 400 em 2019 para US$ 3.500 em 2022, enquanto entre os 10% mais ricos ele foi de US$ 3 milhões para US$ 3,7 milhões.

Jonathan Fisher, economista do think tank Centro Washington para Crescimento Igualitário, acrescenta o impacto dos dois grandes planos de transferência de renda do governo federal, o Cares Act, de 2020, e o American Rescue Plan, de 2021.

Ambos contribuíram para suavizar o impacto da pandemia, incrementar as poupanças das famílias americanas e destravar um círculo virtuoso de consumo e produção —apesar do impacto inflacionário, para o qual eles também contribuíram.

Segundo Fisher, esse quadro explica o aquecimento do mercado de trabalho no país —a taxa de desemprego está em 3,7%—, que beneficiou sobretudo os profissionais mais mal remunerados.

O crescimento relativo da renda na base da pirâmide reduziu o prêmio salarial recebido por aqueles com diploma de ensino superior e contrabalançou quase 40% do aumento na desigualdade salarial em relação aos 10% mais ricos nas últimas quatro décadas, de acordo com um paper apresentado em 2023 pelos economistas David Autor, Arindrajit Dube e Annie McGrew.

Segundo os autores, a pandemia acabou reduzindo o poder de mercado dos empregadores e impulsionou os trabalhadores mais jovens, sem diploma e que ganhavam menos a buscarem vagas mais bem remuneradas e potencialmente mais produtivas.

Um outro trabalho, apresentado pelos economistas Gerald Auten e David Splinter no Journal of Political Economy, argumenta que não houve aumento da concentração de renda nos EUA no 1% mais rico desde o início dos anos 1960 até hoje.

"A recuperação pós-crise foi mais igualitária do que nós vimos em recuperações anteriores, e para a economia como um todo", afirma Fisher.

No entanto, ele alerta para deterioração gradual desse cenário conforme as famílias gastam as poupanças acumuladas na pandemia. Ele se preocupa especialmente com o preço dos imóveis, que se mantêm elevados.

"Com a elevação das taxas de juros pelo Fed e a probabilidade dos juros imobiliários se manterem altos por um tempo, nós veremos um desaquecimento desse mercado. Então não teremos mais a valorização dos imóveis para a classe média, enquanto os ganhos provenientes de ativos financeiros devem se concentrar no topo", diz.

O comportamento da renda na pesquisa do Fed, por sua vez, mostra que todas as faixas ganharam no período —mas, de maneira menos surpreendente, essa alta concentrou-se no topo da pirâmide. Para a família na mediana, a alta foi de apenas 3%, de US$ 67.900 para US$ 70.300 anuais.

Outro dado negativo é a valorização dos imóveis, do ponto de vista de quem não é proprietário. Segundo o Fed, o valor mediano de uma casa atingiu 4,6 vezes o valor da renda mediana familiar, o que significa uma queda expressiva do acesso à propriedade.

Esse mix de sinais positivos e negativos da economia é uma pista para entender a percepção negativa da população sobre a situação do país.

Os ganhos da pandemia e o mercado de trabalho aquecido contribuem para uma visão otimista sobre a situação da porta para dentro, mas a inflação, a elevação dos juros e a dificuldade de adquirir um imóvel contribuem para uma insegurança que se traduz em temor sobre o que está acontecendo da porta para fora, avalia Fisher.

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