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Transição verde e energia cara desafiam economia da Alemanha

Distritos voltados para carros a combustão, industria química e siderurgia ilustram estagnação do país

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Guy Chazan
Donnersberg (Alemanha) | Financial Times

Bernd Hofmann fundou sua empresa de metalurgia há 56 anos. Ele viu muitos altos e baixos, desde então —o choque do petróleo na década de 1970, a agitação da reunificação alemã em 1990, a crise financeira mundial de 2008. Mas nada como o que está presenciando agora.

"É uma das piores fases que já vivi", diz Hofmann, 80.

A empresa de Hofmann, a Femeg, fabrica medidores de água, válvulas de segurança e peças de precisão para as indústrias automobilística e química e se tornou vítima de uma desaceleração que está despertando sérias dúvidas sobre o futuro do muito elogiado modelo de negócios da Alemanha, cuja base é a exportação.

A economia alemã está estagnada. As exportações e produção industrial do país estão em declínio, a inflação está desacelerando a demanda de consumo, e o setor de construção está sofrendo com as taxas de juros altas.

Carros em pátio de porto de Duisburgo, na Alemanha
Carros em pátio de porto de Duisburgo, na Alemanha; indústria automobilística do país começa a sentir efeitos do alto custo energético e transição para veículos elétricos - Ina Fassbender - 19.jul.2023/AFP

Os líderes empresariais alemães já estão acionando os alarmes. Praticamente "todas as economias europeias estão crescendo, com exceção da Alemanha", diz Rainer Dulger, presidente da BDA, a principal organização setorial de empregadores do país. "Esse é um sinal claro de que temos que agir."

De fato, o FMI (Fundo Monetário Internacional) previu que a Alemanha teria o pior desempenho entre as grandes economias em 2023, com um PIB (Produto Interno Bruto) que deve encolher 0,5%. O FMI citou a demanda mais lenta por parte dos parceiros comerciais do país e a fraqueza em setores sensíveis às taxas de juros altas. Em contrapartida, a economia dos EUA deve crescer 2,1%, e a da França, 1%.

Os especialistas sabem exatamente por que a Alemanha está enfrentando essas perspectivas singularmente sombrias. O país sofreu um impacto muito maior do que diversas das outras grandes economias com o aumento dos preços da energia em 2022, em parte porque abriga muitas empresas industriais que respondem por grande consumo de gás natural. O endurecimento da política monetária do BCE (Banco Central Europeu), para combater a inflação, também teve seu preço, assim como a recuperação lenta do comércio com a China, o maior parceiro comercial de Berlim.

Robert Habeck, ministro da Economia da Alemanha, admitiu em outubro que o país estava saindo da crise "mais lentamente do que esperávamos".

Mas alguns dos desafios que o país enfrenta parecem ser duradouros. As empresas reclamam cada vez mais da alta do custo de fazer negócios na Alemanha —a carga com que elas arcam em razão das políticas relativas à mudança do clima, dos altos impostos e da energia cara. Os empresários se queixam da terrível escassez de trabalhadores qualificados e da burocracia excessiva.

"Estamos conversando com o governo sobre inteligência artificial, mas, nos escritórios deles, os funcionários públicos todos ainda têm aparelhos de fax", diz Dulger. "Isso simplesmente não dá certo."

Enquanto isso, a ascensão dos veículos elétricos —e os avanços da China no mercado europeu de veículos elétricos— ameaça um setor que serve há muito tempo como um dos pilares do sucesso econômico da Alemanha.

Em nenhum outro lugar esse processo é mais evidente do que na área do sudoeste da Alemanha onde a Femeg e um grupo de outras empresas de metalurgia de médio porte estão sediadas. Um levantamento recente realizada pela organização de pesquisa IW Consult identificou a região de Donnersberg, que leva o nome da montanha homônima que domina a paisagem circundante, como uma das regiões alemãs que enfrentam os mais sérios desafios.

Os pesquisadores analisaram as duas grandes transformações que estão em curso no país neste momento: a mudança para uma economia neutra em termos de emissões de carbono, o que pressionará os setores que usam energia de maneira intensiva e aqueles que produzem emissões elevadas de poluentes, como a siderurgia e a indústria química; e a transição para o carro elétrico.

O estudo constatou que 6 dos 400 distritos e cidades da Alemanha seriam afetados de forma especialmente intensa por esses processos, e Donnersberg é um deles.

Para Bernd Hofmann, está chegando a hora de um acerto de contas. "O governo sempre disse ao povo daqui que éramos os melhores, os maiores, os líderes, e que o sol nunca se poria", ele afirma. "Durante anos, subir era o único caminho. E caímos em uma espécie de letargia. [...] O futuro próximo será difícil para todos os fabricantes."

"Todas as luzes vão se apagar aqui"

Se há uma empresa que exemplifica os problemas econômicos de Donnersberg é a BorgWarner, fabricante de peças automotivas com sede nos Estados Unidos que atualmente está passando por uma reestruturação maciça.

A fábrica da empresa em Kirchheimbolanden, o centro regional de Donnersberg, se especializa em turbocompressores, pequenas turbinas que forçam a entrada de ar adicional na câmara de combustão de um motor de automóvel a fim de produzir mais potência. A companhia é a maior empregadora da cidade.

A BorgWarner foi por muitos anos uma líder no mercado de turbocompressores. Mas a demanda vem diminuindo, recentemente, diz Andreas Denne, presidente da BorgWarner Turbo Systems. O primeiro golpe foi o escândalo de emissões de poluentes da Volkswagen em 2015, que, segundo ele, causou um "colapso no mercado de motores diesel". Depois veio "toda a discussão sobre carros elétricos".

Inicialmente, a BorgWarner esperava que seus aparelhos muito elogiados ainda tivessem futuro; afinal, eles poderiam ser empregados nos chamados "híbridos leves", que usam um motor de combustão interna tradicional em companhia de uma bateria de 48 volts. A empresa também antecipava que os motores convencionais a gasolina e a diesel pudessem sustentar sua posição por ainda muitos anos.

A União Europeia pôs fim a com essas esperanças ao decidir proibir a fabricação de veículos novos com motores a gasolina e diesel a partir de 2035. De lá para cá, a BorgWarner anunciou planos para reduzir a força de trabalho em Kirchheimbolanden de cerca de 1.600 operários, em 2021, para 650, em 2028.

"Passamos anos acostumados a crescer, crescer, crescer", diz Denne. "Daqui, enviávamos turbocompressores a todo o planeta. Mas os tempos mudaram, e qualquer um que tivesse envolvimento com motores de combustão interna foi afetado."

O mesmo vale para todas as empresas locais que fornecem componentes para a BorgWarner. Nossa "fixação histórica em turbocompressores" é um "grande desafio", diz Rainer Guth, presidente do conselho distrital de Donnersberg. A Femeg serve como exemplo: o fornecimento de peças para esses dispositivos representava 80% de seus negócios automotivos.

Outras empresas próximas também estão voltadas ao setor automotivo. Uma delas é a Gienanth, uma grande produtora de ferro fundada em 1735 em Eisenberg, a maior cidade de Donnersberg, que começou a ganhar fama um século atrás ao fabricar peças para carros de corrida Bugatti.

Atualmente, a companhia produz componentes para motores de locomotivas e navios e para geradores de emergência usados em hospitais ou centrais de dados. Também fabrica pinças de freio para veículos comerciais e tampas de mancais de virabrequim para motores BMW —um lado do negócio que será inevitavelmente afetado pela eliminação progressiva dos motores de combustão interna.

A Gienanth afirma que passou os últimos anos "colaborando com os clientes no desenvolvimento de soluções para produtos destinados a veículos elétricos". A empresa também está "expandindo e diversificando sua carteira de produtos"; um exemplo é sua cooperação com a startup berlinense Stur na fabricação de panelas de ferro fundido.

Donnersberg não é uma relíquia fuliginosa de um passado alemão atrelado aos combustíveis fósseis. A região está repleta de turbinas eólicas e painéis solares. Um dos destaques é uma fábrica controlada por capital japonês que produz câmeras de vigilância. Um pouco além de suas fronteiras fica a cidade de Kaiserslautern, onde a Automotive Cells Co, uma joint venture entre a Mercedes-Benz, a Stellantis e a TotalEnergies, está construindo uma grande fábrica para produzir células de bateria de íons de lítio destinadas a veículos elétricos.

Mas, embora algumas partes da região estejam se recuperando, outras estão em declínio. A uma hora de carro de Donnersberg fica Saarlouis, sede de uma grande fábrica da Ford com quase 60 anos de história —e um futuro sombrio.

A Ford anunciou no ano passado que deixaria de fabricar carros na fábrica e construiria sua próxima geração de veículos elétricos na cidade espanhola de Valência. Em outubro, a montadora anunciou que as negociações para vender a fábrica a um grande investidor, cujo nome não foi revelado, haviam fracassado. Mais de 3.000 empregos estão em risco.

O lento declínio dos carros movidos a gasolina é um dos problemas enfrentados por Donnersberg; o enorme aumento nos custos de energia é outro. Reiner Bauer, diretor de desenvolvimento de negócios do distrito, diz que grane número das empresas da região que fazem uso intensivo de energia foram vistas por muito tempo como "inovadoras, lucrativas, com programas de treinamento modelares e excelente gestão". Mas a crise energética mudou tudo isso.

"Quando você se vê diante de uma espiral de custos de energia, simplesmente deixa de ser competitivo internacionalmente", ele diz.

Bauer cita o exemplo da Heger, uma fundição de ferro perto de Kaiserslautern que fabrica peças para turbinas eólicas. A empresa declarou insolvência em setembro do ano passado, informando que seu custo mensal de eletricidade era de € 700 mil (R$ 3,7 milhões), ante apenas € 100 mil (R$ 528 mil) antes da disparada dos preços, e que já não era possível repassar esse aumento aos clientes. "Os preços da energia estão nos matando", disse Johannes Heger, diretor administrativo da empresa, à mídia local, na época.

Outra empresa que hoje paga muito mais pela energia é a Basf, o maior grupo químico do mundo, que fica a 40 minutos de carro de Donnersberg, em Ludwigshafen, no rio Reno. A empresa foi forçada a fechar várias de suas linhas de produção com maior consumo de energia, incluindo a de amônia, cicloexanol (um ingrediente de sabonetes e plásticos), e TDI (usado para fabricar colchões de espuma). Cerca de 700 empregos serão afetados.

O governo é fatalista com relação a esses desdobramentos. "Só produzíamos amônia aqui porque tínhamos acesso ao gás natural russo barato —e agora isso acabou", diz um importante funcionário do governo. "Não acho que a Alemanha estará fabricando produtos químicos básicos, plásticos e amônia, em 2035. Talvez faça mais sentido produzi-los na Arábia Saudita, onde a energia é mais barata."

Mas não é assim que a situação é vista em Donnersberg. O distrito abriga as moradias de centenas de trabalhadores da Basf, que viajam todo dia para o trabalho, e contemplam com alarme a construção de uma nova fábrica de petroquímicos de € 10 bilhões (R$ 52 bilhões) pela empresa na China e os cortes de pessoal que ela vem promovendo na Europa.

"Se uma empresa desse tipo transferir suas operações para o exterior devido ao custo elevado de energia ou à escassez de trabalhadores qualificados na Alemanha, todas as luzes se apagarão, aqui", diz Guth.

Problemas na construção

Não são apenas os setores que usam energia de forma intensiva que estão sofrendo: a queda no setor de construção da Alemanha também está sendo sentida em Donnersberg. "A situação é dramática", diz Frank Dexheimer, presidente da Frambach, uma empresa de construção em Kirchheimbolanden.

As empresas de construção em toda a Alemanha foram prejudicadas pelas taxas de juros altas e por um grande aumento no custo dos materiais de construção. Um levantamento do Ifo Institute, uma organização de pesquisa, revelou que 21,4% das construtoras residenciais foram afetadas por cancelamentos de projetos em setembro, o nível mais alto desde que dados sobre isso começaram a ser acompanhados, em 1991.

A empresa de Dexheimer vem sendo protegida pela diversidade dos serviços que oferece. Está envolvida em projetos de engenharia civil e reformas de edifícios residenciais, onde ainda há contratos a obter. Mas todas as empresas que se concentram exclusivamente em novas construções estão sofrendo, diz.

"O ano que vem será cruel para essas empresas", acrescenta. "Veremos muitas falências."

As verdadeiras vítimas da crise são as famílias jovens, diz Dexheimer. O preço de um terreno e casa familiar em Donnersberg era de cerca de € 500 mil alguns anos atrás, diz ele; agora, chega aos € 750 mil, como resultado do aumento dos custos de construção. Enquanto isso, as taxas de juros hipotecários subiram de cerca de 1% para entre 4% e 5% ao ano.

"As famílias jovens já não conseguem obter empréstimos para comprar uma casa —os imóveis são caros demais", ele diz.

É fácil encontrar provas dessa queda em Kirchheimbolanden. Recentemente, a cidade tentou comercializar cerca de 40 terrenos para a construção de casas novas, mas só conseguiu vender três deles. "Os terrenos estão desocupados", diz Dexheimer. "A demanda entrou em colapso."

Donnersberg também é vítima de um dos problemas mais persistentes da Alemanha: a escassez crônica de mão de obra qualificada. O governo afirmou que o envelhecimento da população significa que a Alemanha poderá ter 7 milhões de trabalhadores a menos, em 2035. O governo aprovou leis para facilitar a contratação de estrangeiros para trabalhar no país. Mas as organizações empresariais afirmam que muito mais precisa ser feito.

Hubert Hack, proprietário de uma pequena fundição de ferro em Eisenberg que fabrica peças para os setores automobilístico e de motores, diz que encontrar trabalhadores se tornou seu "maior desafio" —ainda maior do que as contas salgadas de energia. Ele está tentando preencher três vagas em sua empresa há meses.

"Os jovens parecem mais preocupados com o equilíbrio entre vida pessoal e profissional do que com trabalhar duro", ele diz.

Hack, 64, diz que recorreu à contratação de aposentados. "Tenho cinco deles que trabalham aqui em meio período, quando necessário", diz o empresário. "São mais confiáveis do que os jovens."

A história dele é típica. Uma pesquisa do Ifo em agosto revelou que 43,1% das empresas alemãs não têm número suficiente de trabalhadores qualificados. Habeck admitiu no início deste mês que a questão era um dos "maiores desafios estruturais que temos que superar".

"Precisamos recuperar nosso pique"

Mas Habeck também vê motivos para ter esperança. Ele disse que a economia alemã deve voltar a crescer em 2024. A inflação está diminuindo, o mercado de trabalho é robusto e a renda real está subindo, afirmou, o que poderia ajudar a acabar com a queda da demanda nacional.

Joachim Nagel, presidente do banco central da Alemanha, compartilha desse otimismo. Em um discurso para líderes empresariais e políticos em Berlim, ele rejeitou as afirmações de que a Alemanha era o "país doente da Europa" ou uma nação a caminho da "desindustrialização".

As empresas alemãs resistiram bem à crise do gás natural, ele disse, investindo pesadamente em medidas de eficiência para reduzir o uso de energia. Elas se mostraram "altamente adaptáveis", disse Nagel, elogiando a engenhosidade dos "campeões ocultos" do país e a força do "Mittelstand", as pequenas e médias empresas que formam a espinha dorsal da economia alemã.

A resiliência dessas empresas o torna "em geral otimista", disse Nagel. "‘Made in Germany’ continuará, em minha opinião, a ser uma marca registrada cobiçada e bem-sucedida."

Para o futuro mais distante, a Alemanha também está obtendo grandes progressos na criação de novos setores econômicos. Atraídas por subsídios maciços, a Intel e a TSMC estão construindo fábricas de semicondutores em Magdeburgo e Dresden, o que representa uma mudança na geografia industrial da Alemanha, do sul para o leste. Fábricas de baterias para veículos elétricos estão surgindo por toda parte, e empresas antigas, como a Thyssenkrupp, estão investindo bilhões para reduzir as emissões de poluentes geradas por sua produção.

Habeck diz que seu ministério está supervisionando um fluxo de € 80 bilhões de investimentos planejados por empresas estrangeiras. "A Alemanha, como local de negócios, é tão forte quanto quiser ser", ele disse no mês passado.

A BorgWarner, fabricante de turbinas automotivas, está se esforçando para se reinventar. Ela desenvolveu um "eBooster", um compressor acionado eletricamente que pode ser usado em veículos híbridos. Denne o descreve como uma "ponte para o futuro" para a unidade de Kirchheimbolanden.

A empresa também está procurando usar sua tecnologia de turbocompressores para a geração descentralizada de energia. Seu centro de tecnologia em Kirchheimbolanden desenvolveu um "e-fan" —um ventilador acionado eletricamente, para resfriar os componentes de carros movidos a bateria. Mas esse produto será fabricado nas fábricas da BorgWarner em Portugal e nos Estados Unidos, não em Donnersberg.

Hans-Joachim Retzlaff, diretor de recursos humanos do centro tecnológico, diz que as oportunidades de negócios para a indústria automobilística alemã com certeza diminuirão.

"Se observarmos que a Alemanha está se tornando um importador de carros elétricos, e que devemos contar com muitos veículos elétricos chineses baratos, fica claro que nossa participação no mercado mundial diminuirá", diz. "E nosso negócio se tornará correspondentemente menor."

A Femeg também está tentando acompanhar os tempos, saindo do setor automotivo e ingressando na fabricação de armas, uma área que cresceu muito na Alemanha desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia.

A empresa é proprietária de uma fundição no sudoeste da Alemanha que fabrica componentes para motores de tanques Leopard e também está em transição para a produção de munição e peças para equipamentos militares pesados.

"Não estamos apenas sentados aqui nos lamentando; temos de continuar nos movendo", diz Bernd Hofmann. Mas ele acredita que a recessão se aprofundará, a menos que o governo tome medidas mais decisivas, especialmente no que diz respeito à questão dos custos de energia.

"Temos que, uma vez mais, tornar este país um lugar mais atraente em que investir", diz. "Precisamos de um novo espírito de otimismo. Precisamos recuperar nosso pique."

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