Descrição de chapéu BBC News Brasil Agrofolha União Europeia

'Há muito protecionismo verde disfarçado de boas intenções', diz secretária de Comércio sobre nova lei europeia

Secretária de Comércio Exterior diz que nova norma é discriminatória e pode prejudicar o país; governo busca solução

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Leandro Prazeres
Brasília | BBC News Brasil

Discriminatória, unilateral e punitiva. É assim que a secretária de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic), Tatiana Prazeres, classificou, em entrevista à BBC News Brasil, a lei antidesmatamento da União Europeia cuja aplicação começa, oficialmente, em dezembro deste ano.

A legislação determina que um grupo de sete commodities, entre elas carne bovina e soja, tenham sua entrada no bloco vedada se vierem de áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020.

Oficialmente, o bloco alega que a restrição é uma medida para que os consumidores europeus não financiem de alguma forma o desmatamento de áreas de floresta a partir do consumo de produtos oriundos dessas regiões.

'Temos sérias dúvidas sobre a compatibilidade desse regulamento com as regras internacionais de comércio', disse Tatiana Prazeres à BBC News Brasil
'Temos sérias dúvidas sobre a compatibilidade desse regulamento com as regras internacionais de comércio', disse Tatiana Prazeres à BBC News Brasil - José Cruz/Agência Brasil

O governo brasileiro, no entanto, teme que a medida possa afetar as exportações do país ao bloco que, em 2023, foi o segundo maior comprador de produtos brasileiros, totalizando US$ 46 bilhões.

Uma estimativa do governo baseada em dados de 2022 pontua que 34% de tudo o que o país exporta ao bloco europeu é composto por commodities listadas na nova regulamentação.

Tatiana Prazeres alega que, apesar de a preservação ambiental ser um fim legítimo, a nova regulamentação europeia seria restritiva demais para atingir esse objetivo.

Tatiana diz querer evitar fazer julgamentos sobre a norma europeia, mas coloca em xeque iniciativas implementadas sob o pretexto da preservação ambiental.

"Ninguém questiona a legitimidade de políticas voltadas à preservação ambiental e combate ao desmatamento, mas há muito protecionismo verde escondido atrás de boas intenções. Não há a menor dúvida disso", diz a secretária.

Tatiana disse que uma das preocupações do governo brasileiro é que o conceito de floresta adotado pela norma europeia poderia afetar produtos oriundos do Cerrado brasileiro, uma das principais áreas produtoras de commodities agrícolas do país.

Isto aconteceria porque o conceito de floresta usado pela legislação europeia é o mesmo do Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) que define floresta como uma área superior a 0,5 hectare com árvores maiores que cinco metros de altura ou capazes de alcançar esses parâmetros.

A estimativa é de que não apenas o bioma amazônico entraria nessa classificação, mas também algumas áreas de transição do Cerrado.

À BBC News Brasil, Tatiana Prazeres disse ainda que o Brasil não descarta acionar os mecanismos de resolução de conflitos da Organização Mundial do Comércio (OMC) em relação à nova norma.

"Quero deixar claro aqui que eu não estou anunciando um contencioso, mas todas as opções estão sobre a mesa", disse.

Ela também revelou que os países do Mercosul estão preocupados com os impactos da nova norma da União Europeia. Isto porque os dois blocos negociam um acordo de livre comércio que se arrasta desde 1999.

Segundo ela, a principal preocupação é com a percepção de que os europeus possam estar oferecendo supostas oportunidades de entrada de produtos por meio do acordo com uma mão, e restringindo o acesso a produtos do bloco sul-americano por meio da nova legislação com a outra.

Confira os principais trechos da entrevista:

Como essa nova regulamentação poderá afetar o Brasil? Ela vai afetar produtos do Cerrado?
O governo brasileiro acompanha com muita preocupação o regulamento da União Europeia sobre produtos livres de desmatamento. O regulamento é conhecido, mas a regulamentação dele ainda está em curso e há várias dúvidas a respeito de como a aplicação dessa regra se dará na prática.

Nós tivemos reuniões específicas com representantes da Comissão Europeia para expressar nossas preocupações. O nosso entendimento é de que neste momento é que, pela definição de floresta contida no regulamento, algumas áreas de fronteira do Cerrado poderiam, sim, estar abarcadas pela nova regulamentação porque a regra não menciona biomas específicos.

Mas nós temos sérias dúvidas sobre a compatibilidade desse regulamento com as regras internacionais de comércio e nós já expressamos isso. Ao mesmo tempo em que nós buscamos negociar com a Comissão Europeia, isso não significa um endosso ao que eles estão fazendo. A gente tem dito de uma maneira muito clara que esse diálogo com a Comissão Europeia não significa que estamos chancelando a regra ou que estamos abrindo mão de, eventualmente, contestar a medida.

A senhora falou que tem sérias dúvidas sobre se essa nova regulamentação e de que seria compatível com as regras do comercio internacional. Por que ela não seria?
Em primeiro lugar, ela é discriminatória. Em segundo lugar, ela é mais restritiva do que o devido para atingir um objetivo legítimo.

Discriminatória em que sentido?
Ela é punitiva em relação os países que protegeram suas próprios florestas. Ela define arbitrariamente uma data de corte e os países que desmataram suas florestas antes daquela data têm um passe livre para exportar para a União Europeia. Já os países que têm um desmatamento mais recente, como o Brasil, vão estar sujeitos a uma série de restrições. Ela acaba tratando países de uma maneira diferente sem que haja uma justificativa.

Legislação da União Europeia proíbe entrada de commodities como soja e carne bovina oriundas de áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020. Norma entra plenamente em vigor em dezembro deste ano - Getty Images via BBC

Se há dúvidas quanto à compatibilidade dessa nova regulamentação, o que o governo pretende fazer, por exemplo, junto à OMC?
Nós já acionamos a OMC, mas não no âmbito do mecanismo de solução de controvérsias. O Brasil, junto a um grupo relevante de países, levantou uma série de questões técnicas sobre essa regulamentação. Com frequência, esse é o processo. Primeiro, vamos analisar as respostas que vierem dessa fase de consulta.

No último ano, houve redução no desmatamento na Amazônia e aumento no Cerrado. Há um grupo de ambientalistas e organizações não governamentais que avalia que o Cerrado precisa ser incluído na nova regulamentação antidesmatamento da União Europeia porque, se isso não acontecer, essa legislação protegerá a Amazônia, mas aumentará a pressão por desmatamento no Cerrado. Qual a avaliação do governo sobre isso? Para o governo, o Cerrado deve ficar fora ou dentro dessa legislação?
Nós achamos que essa regulamentação não é a melhor maneira de lidar com o desafio ambiental. Ponto. A sustentabilidade é uma agenda prioritária para esse governo e não há a menor dúvida sobre isso. A questão é que não é por meio de medidas unilaterais com ameaças de sanção que vamos proteger as florestas. É necessária uma abordagem mais cooperativa e menos punitiva para isso. Essa sua pergunta quase sugere que, em função do que faz a União Europeia, o Brasil iria proteger as florestas para conseguir seguir exportando para lá, mas não é isso que nos move. Essa não é a lógica do governo brasileiro e muito menos do mercado. O que pode acontecer é que podemos deixar de vender pra Europa e passarmos a vender para outros mercados. Não é por causa de uma legislação europeia que o governo brasileiro vai fortalecer o combate ao desmatamento.

A senhora, então, não concorda com a ideia de que essa nova regulamentação pode vir a aumentar para a pressão de desmatamento sobre o Cerrado?
Não. Não acho.

Durante as conversas sobre o acordo entre Mercosul e União Europeia, os negociadores sul-americanos tentaram obter salvaguardas para produtos locais que poderiam ser abrangidos por essa nova regulamentação. Em que estágio estão essas negociações?
Essa preocupação está muito presente. Os países do Mercosul se preocupam com o risco de União Europeia oferecer oportunidades com uma mão, por meio do acordo ao reduzir tarifas de importação e ampliando cotas para nossos produtos, mas, com a outra mão, fechar mercados completamente com medidas unilaterais como essa nova regulação antidesmatamento.

Norma da União Europeia impõe restrições à entrada de soja produzida em áreas recentemente desmatadas - Ueslei Marcelino/Reuters

A senhora fala que os fins e as intenções da União Europeia são legítimas, mas há quem classifique essas medidas como protecionismo verde...
Eu não digo que as intenções da União Europeia na legislação A, B ou C sejam legítimas. O que eu digo é que ninguém questiona a legitimidade de políticas voltadas à preservação ambiental e combate ao desmatamento, mas há muito protecionismo verde escondido atrás de boas intenções, não há a menor dúvida disso.

Há protecionismo verde escondido atrás dessa nova regulamentação específica?
Essa regulamentação é mais restritiva do que o necessário para atingir objetivos supostamente legítimos. Não vou fazer julgamentos sobre esta medida em particular. Nós temos sérias dúvidas sobre a compatibilidade da medida com as regras. Certamente, alguns setores na União Europeia se beneficiariam com essas restrições, mas muitos seriam prejudicados.

O governo tem um cronograma de medidas previstas para dirimir as dúvidas sobre a implementação dessa regulamentação ou mesmo para acionar o mecanismo de solução de controvérsias na OMC?
Eu quero deixar claro aqui que eu não estou anunciando um contencioso (termo usado para designar uma disputa comercial propriamente dita dentro do mecanismo da OMC), mas todas as opções estão sobre a mesa. Nós gostaríamos de ver e ter mais clareza, o quanto antes, sobre a maneira de como esse regulamento vai ser implementado.

Estamos trabalhando numa iniciativa liderada pelo Ministério da Agricultura para a criação de uma plataforma que forneça dados ambientais ao produtor e ao exportador brasileiro para reduzir os riscos às nossas exportações.

Nós estamos correndo contra o tempo, aí sim, para viabilizar o acesso a essas informações de uma maneira simplificada, mas é necessário que os europeus reconheçam a validade dos dados e dos sistemas de monitoramento e rastreamento brasileiros.

Do jeito que está, já há uma estimativa de quanto isso pode afetar nossas exportações?
Ninguém sabe porque ninguém tem as informações sobre como isso vai ser implementado. Em última instância, é o importador europeu que vai avaliar se ele está confortável com as informações sobre a origem dos produtos que ele está importando. Isso faz com que seja especialmente difícil para nós avaliarmos o impacto. O que eu posso dizer com dados até 2022 é que cerca de 34% de tudo o que o Brasil exporta para a União Europeia é composto por produtos regulados por essa nova norma.

Que setores preocupam mais?
Alguns setores nos preocupam mais como o café, porque 50% do que o Brasil exporta de café ao mundo vai para a União Europeia. Seria difícil encontrar um outro mercado que absorva esse mesmo volume de forma rápida. Ao mesmo tempo, o café tem uma série de certificações que são reconhecidas no mercado como relevantes, mas não sabemos se essas certificações serão levadas em conta pela nova regulamentação.

Outro setor que nos preocupa é o de couro bovino porque a rastreabilidade da carne brasileira foi feita pensando na carne e não no couro. Hoje, há uma dificuldade técnica de garantir a rastreabilidade exigida pelos europeus para o couro e isso pode gerar um problema sanitário grave no Brasil porque se ele não for exportado, o risco é que ele apodreça e isso teria um impacto ambiental grande. O outro setor é a soja. A China é o maior importador de soja brasileira, mas por conta do valor e do volume que vai para a União Europeia, isso também nos preocupa.

Além da União Europeia, já se fala que a China estaria planejando instituir um regulamento semelhante para impedir produtos oriundos de desmatamento de chegarem ao mercado chinês. Como está essa iniciativa e que como estão as conversas com as autoridades chinesas sobre isso?
Há uma conversa sobre sustentabilidade, parâmetros a respeito da discussão de comércio desenvolvimento sustentável. Outros mercados também avançam nesse sentido, mas fala se de maneira mais razoável do que os europeus. Por exemplo, os britânicos adotaram uma legislação de antidesmatamento que não é perfeita, mas nos parece mais adequado do que a adotada pelos europeus.

Este texto foi publicado originalmente aqui.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.