Sem água encanada, moradores de cidade colada a Belém recorrem a poços, bicas e lata na cabeça

Ananindeua (PA) tem 2º pior índice de abastecimento entre grandes cidades; Cosanpa diz que investimentos serão feitos

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Moradores da Comunidade Deus Proverá, em Ananindeua (PA), pegam água para beber em uma bica construída na própria comunidade. O local não tem saneamento nem água encanada e costuma inundar com chuvas fortes Lalo de Almeida - 12.abr.24/Folhapress

Ananindeua (PA)

Na cidade colada a Belém —a capital amazônica que será sede da COP30 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas) em 2025—, moradores de bairros periféricos e esquecidos precisam recorrer à lata d’água na cabeça. Ou num carrinho de mão, na ponta da corda de um poço, num quintal aberto para amparar água de chuva.

Ananindeua (PA) tem uma população de 479 mil pessoas e, no ranking das cem maiores cidades brasileiras, ocupa o segundo pior lugar em relação ao índice de abastecimento de água, com apenas 42,74% das pessoas atendidas. A última posição é de uma capital, também na Amazônia: Porto Velho, com 41,79%.

Os dados são de 2022 e foram elaborados em 2024 pelo Instituto Trata Brasil, uma organização formada por empresas que atuam com saneamento básico. O levantamento usa dados do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), do Ministério das Cidades.

Maria Joana Pinheiro carrega um balde d'água na cabeça para abastecer a casa do seu filho, Moisés Pinheiro, na Ocupação Nova Estrela, no bairro Curucamba, na periferia de Ananindeua - Lalo de Almeida - 12.abr.24/Folhapress

No bairro Curuçambá, em Ananindeua, moradores reclamam de falta de água na torneira por até 15 dias. Mas nas franjas do bairro, em ocupação em área de várzea, não há torneiras, não há água encanada. Sem abastecimento, moradores da Ocupação Nova Estrela recorrem a poços, e nem todo mundo consegue cavar um.

Uma diferenciação feita pelos moradores é entre poço artesiano, mais profundo e com água de melhor qualidade, e poço de boca aberta, mais raso e com água mais suja. Cavar o primeiro custa entre R$ 2.500 e R$ 3.000. O segundo sai por R$ 600.

A expansão da ocupação —são cerca de cem famílias no lugar— fez aumentarem os conflitos por água. Nem todo mundo aceita compartilhar o uso dos poços. Esse compartilhamento acaba sendo mais comum entre integrantes de uma mesma família.

Maria Joana Pinheiro, 57, tem um poço artesiano, bomba para sucção da água e uma caixa para armazenamento de mil litros. É quase uma exceção na ocupação. Seu abastecimento próprio serve outras quatro casas.

Uma delas é a do filho, Moisés Pinheiro, 40, que está em uma cama, em razão de um grave acidente de moto. Ele é motoboy, estava em serviço, e fraturou a perna em diferentes lugares no acidente. Ainda não consegue andar e trabalhar.

Em uma casa de cômodo único, com um banheiro improvisado aos fundos sobre uma fossa, Moisés depende da ajuda da mãe para ter água. A casa dele é uma das residências que não têm poço artesiano, poço de boca aberta ou encanamento para aproveitamento do abastecimento de residências vizinhas.

Moisés Pinheiro, morador da Ocupação Nova Estrela em Ananindeua, local que não tem agua encanada. Ele fez uma cirurgia e está acamado, e depende da água trazida pela mãe em baldes para abastecer sua casa - Lalo de Almeida - 12.abr.24/Folhapress

Todos os dias, Maria Joana enche um balde com água e o transporta na cabeça até a casa do filho. Ela faz esse percurso seis vezes ao dia. Outras famílias fazem o mesmo na Ocupação Nova Estrela.

"Eu dependo dessa água para o banho e para o vaso", diz Moisés. "Também uso para beber, depois de coar."

O motoboy, antes do acidente, fazia bicos como cavar poços aos vizinhos. Conflitos entre famílias passaram a ser mais frequentes, uma vez que alguns moradores se recusam a compartilhar a água. A situação se agrava no verão amazônico, de setembro em diante, quando parte dos poços seca, especialmente os de boca aberta.

Na casa de Kelly Santos, 37, e Marco Antônio Cabral, 35, um poço de boca aberta foi cavado, com dez metros de profundidade. É cercado por tijolos, e a água é retirada em um balde amarrado a uma corda.

Kelly Santos tira água de um poço no quintal de sua casa na Ocupação Nova Estrela, no bairro Curucamba, na periferia de Ananindeua - Lalo de Almeida - 12.abr.24/Folhapress

O casal usa a água do poço apenas para lavar objetos e para o banho. Para cozinhar, a água usada é de uma vizinha com poço mais profundo, de 18 metros. E para beber, eles compram água mineral, por temer que o filho de dois anos contraia doenças comuns em lugares sem abastecimento com água tratada —a mais comum é a diarreia.

"Às vezes, alguns negam água. Já teve briga mais séria por causa de poço", afirma Marco Antônio, que é cozinheiro e faz bicos na área de construção civil.

Em nota do governo do Pará, a Cosanpa (Companhia de Saneamento do Pará) afirmou ter contratado uma operação de crédito junto ao BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), no valor de US$ 125 milhões, para um projeto de desenvolvimento de saneamento no Pará.

Junto ao BNDES, houve aprovação de empréstimo de R$ 314 milhões para estação de tratamento de água que atende a região metropolitana de Belém, segundo a Cosanpa. Estão previstos reforma de setores de distribuição de água, fortalecimento da prestação de serviço e investimento em projetos de esgoto, afirmou.

A prefeitura de Ananindeua disse, em nota após a publicação da reportagem, que o abastecimento de água é responsabilidade do governo estadual. Mesmo assim, o Município atua para melhorar as condições de saneamento da população, afirmou. "Em consequência dos investimentos feitos, a cidade subiu 10 posições no ranking geral do Trata Brasil."

Nas imediações do Curuçambá, uma comunidade de dez famílias indígenas venezuelanas, da etnia warao, está em uma situação ainda mais precária.

Em casas suspensas na beira de um igarapé sujo, os indígenas precisam esperar a maré baixar para acessar "banheiros" improvisados no mato. Uma tubulação irregular canaliza água da rua mais próxima. De um poço, sai a água do banho.

As crianças se banham no igarapé. E consomem a água do lugar. Os indígenas, que deixaram a Venezuela para fugir da fome, estão em constante insegurança alimentar na ocupação.

"Aqui vamos ficando, não temos outro lugar para ir", diz Luiz Arzolay, 48, cacique dos cerca de cem waraos da ocupação. Warao significa "povo das águas". Os indígenas estão originalmente em áreas interfluviais na bacia do rio Orinoco, na Venezuela.

Criancas warao brincam em igarapé embaixo de casa no bairro de Curucamba, na periferia de Ananindeua - Lalo de Almeida - 12.abr.24/Folhapress

Em outro ponto de Ananindeua, na beira da rodovia Radial Norte e ao lado de um canal, a comunidade Deus Proverá virou um lugar de parada obrigatória para moradores de diferentes bairros da cidade, acostumados à falta d’água.

Na comunidade, há uma bica em cima de um olho d’água, usada por famílias tanto da ocupação quanto de outros bairros, próximos ou distantes.

Os engradados são carregados em carrinhos de mão. Outros, levados em carros e até mesmo em caminhões.

Os moradores de Deus Proverá sofrem com enchentes constantes, a partir do transbordamento do canal que corre em paralelo. As casas de madeira vão subindo de patamar a cada enchente, em uma tentativa de escapar da próxima inundação.

Vivem na ocupação cerca de 35 famílias. Há poucas fossas na comunidade. Dejetos são direcionados ao canal.

"A gente veio para cá por falta de moradia. O terreno estava abandonado, e a ocupação ocorreu há oito anos", afirma Josué Amador, 30, que vive na Deus Proverá com a mulher e três filhos.

A casa tinha acabado de ser invadida por água de enchente. "Aqui, nunca chegou melhoria. Quando algo melhora, é por esforço dos moradores, como aterrar as ruas com entulho."

Segundo o governo do Pará, a Secretaria de Obras Públicas pavimentou 80 quilômetros de vias em Ananindeua, desde 2019, com "drenagem profunda e superficial".

"Em 2022, a secretaria entregou os trechos dos canais Maguariaçu e das Toras. Foram executados os serviços de drenagem de águas pluviais."

No ranking do saneamento como um todo, feito pelo Trata Brasil com base em indicadores das cem maiores cidades brasileiras, Ananindeua ocupa a 90ª posição, até melhor do que Belém, em 93º.

Quando o recorte é apenas o abastecimento de água, a cidade conurbada a Belém aparece em 99º. As cinco piores cidades em acesso a água potável são da Amazônia: Porto Velho, Ananindeua, Santarém (PA), Rio Branco e Macapá, nesta ordem.

Os dados do SNIS de 2022 mostram ainda que, na região Norte, a população atendida com rede de água é de 64,2%. Com rede de esgoto, são 14,7%.

São os piores indicadores por região. Em todo o país, 84,9% da população tem acesso à água encanada. A rede de esgoto chega a 56% da população, conforme os dados do SNIS.

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