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Alto astral e boas energias não estão à venda

Apesar de o conhecimento místico ser acessível como nunca, a capacidade de transcender é uma experiência intransferível

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Brasília

I Ching chinês, runas nórdicas, beberagens xamânicas, mapa astral, tarôs de muitas origens —do egípcio ao tradicional francês de Marselha. É vasto e diverso o arsenal místico que hoje está disponível a um clique na internet, na lojinha da esquina de casa ou em qualquer shopping center.

Olhando a história do chamado conhecimento hermético, tal democratização é prova cabal de que nossa geração é privilegiada por um imenso volume de informações.

Por milhares de anos, sim, milhares mesmo, a produção e o acesso a temas que prometiam elevar o ser humano além de seus limites físicos e a reconhecer o poder daquilo que não se vê ficaram restritos a poucos. Mesmo entre povos nômades ou nas aldeias da antiguidade, o oculto era que o nome diz —algo escondido que poucos podiam vivenciar. A transferência oral e, depois, os escritos ligados ao conhecimento capaz de conectar o ser humano a forças superiores eram temas de debates e estudos para eleitos.

Efe Godoy

Foi só no século 19 que isso começou a mudar. Aquele período foi marcado pela ascensão de personalidades sobrenaturais e pelo debate público de temas até então secretos.

Allan Kardec, atraído pelo fenômeno das mesas que levitavam e pelos médiuns, estabeleceu os pilares da doutrina espírita. A controversa Helena Blavatsky ajudou a fundar a Sociedade Teosófica. Eliphas Levi ganhou fama e respeito como mestre do ocultismo. Marie Anne Lenormand deu novo fôlego ao tarô ao ser tornar cartomante de Napoleão Bonaparte e sua esposa.

Havia um contexto histórico para esse fenômeno da popularização da temática transcendental, por assim dizer. Um certo vazio espiritual começava a incomodar. As religiões tradicionais perdiam apelo.

Isso abriu espaço para a expansão do que podemos chamar de versão mística das antigas doutrinas. A cabala do judaísmo, o gnosticismo do cristianismo e sufismo do Islã passaram a ser mais estudados que as antigas leis de sinagogas, igrejas ou mesquitas.

Ao mesmo tempo, a ciência e o engenho humano ganhavam espaço. Aquele também era o momento da revolução industrial, do avanço das ferrovias, da invenção da lâmpada. O mundo interior, a magia da natureza e o Deus dos velhos dogmas se dissipavam com o ruído dos motores e das caixas registradoras.

Guardadas as devidas proporções, é algo assim que embala o mercado de produtos esotéricos nos dias atuais. Há uma espécie de renovação na busca pelo sentido do que esta escondido em nós e no plano astral superior, em outra dimensão. Na verdade, é mesmo difícil definir do que se trata, mas as vendas estão aí para mostrar que o interesse existe e é crescente.

Mas a lista dos livros e palestras mais vendidos sobre esoterismo e correlatos preocupa. Prevalecem aqueles que dão dicas para qualquer coisa, como se existisse receita para a transcender.

Existem manuais e consultores espirituais para tudo. Para atrair dinheiro e sucesso no trabalho. Para encontrar a bruxa ou o mago que há no seu interior. Para fazer uma viagem espiritual. Para conversar com o anjo da guarda. Para resgatar lições de vida passadas. Para usar a seu favor os ensinamentos de civilizações perdidas. Para se conectar às forças das entidades que habitam matas, rios, ventos e mares.

Em síntese, o que se vende, e as pessoas compram cheias de esperanças, são fórmulas fáceis para atrair a prosperidade, o amor e um permanente estado edílico.

Nada disso, porém, está à venda. Uma experiência mística não pode ser produzida, embalada e vendida. Não é transferível em palestras ou ensinada em workshops.

Pagar por livros, músicas, objetos, alimentos, poções e viagens coletivas a locais que funcionariam como portais para outras dimensões, interiores e além do universo físico, não são garantia nada. Podem ampliar conhecimentos culturais ou filosóficos, alimentar debates, fornecer alimento para a mente, mas não garante a transcendência para uma pessoa ou uma vida melhor.

Aliás, uma experiência de superação transformadora, que leve ao que há de melhor em nós e a uma existência mais frutífera, costuma ser solitária, carregada de conflitos, sacrifícios, derrotas e decepções imprevisíveis —tudo que os manuais do mercado esotérico preferem ignorar.

A história do alpinista austríaco Heinrich Harrer é um bom exemplo. Arrogante, irritadiço e em busca de glória, ele deixou a mulher grávida sozinha em 1943 para escalar o Nanga Parbat, o nono pico mais alto do mundo, na cordilheira do Himalaia. No entanto, foi pego de surpresa pelo acirramento da Segunda Guerra e preso em um campo de concentração na região.

Conseguiu escapar após várias tentativas infrutíferas, e perambulou pelas inóspitas montanhas do Tibet, passando fome e frio, até ser abrigado na sagrada cidade de Lhasa. Lá passou a conviver com o Dalai Lama criança e com a pacífica comunidade local que praticava a paciência, a humildade e o respeito com as demais criaturas, enquanto a China ameaçava invadir e tomar o Tibete, o que de fato ocorreu em 1950.

Harrer narra esse período no livro "Sete Anos no Tibete", que foi convertido em filme tendo o ator Brad Pitt no papel do protagonista. A história é a narrativa dessa viagem, em que tudo deu errado, mas terminou como uma transformadora jornada mística.

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