Ao meio-dia de segunda (15), seis horas antes da chegada do papa Francisco a Santiago, cerca de mil carabineiros (policiais militares) já se organizavam na Alameda, principal avenida da capital.
Os ambulantes que todos os dias vendem refrigerantes e empanadas gritavam até ficarem esganados oferecendo bandeiras do Vaticano, terços e pingentes com o rosto do papa, mas faltava o público.
"Por que não lotaram as ruas?", perguntava perplexa uma jovem venezuelana. "Não percebem que é o papa?"
Sim, ele é o papa, mas o Chile encara essa visita de uma forma muito diferente à de João Paulo 2º em 1987.
Na agonia da ditadura (1973-90), Karol Wojtyla apareceu na varanda do Palácio de La Moneda com Augusto Pinochet, mas a Igreja Católica era vista com uma força moral da sociedade.
Mais de 70% dos chilenos se declaravam católicos, e não só os padres de bairros pobres mas também muitos bispos clamaram pelos direitos humanos e a democracia.
Hoje a democracia está consolidada, mas menos da metade dos jovens se consideram fiéis. Além disso, a Igreja é questionada por sua cumplicidade com a pedofilia. O caso do padre Fernando Karadima, denunciado em 2010, fez com que diminuísse drasticamente o prestígio da Cúria.
O bispo de Osorno, no sul do país, Juan Barros, braço direito de Karadima, se tornou o símbolo da exigência ao papa de fazer algo concreto para mostrar que não se tolera e se pune o abuso sexual.
INDIFERENÇA
Nas ruas, pequenos grupos de manifestantes mostram cartazes contra o abuso sexual praticado pelos padres e a desigualdade social e econômica, mas boa parte da população reage com indiferença.
São 2h de terça-feira. O padre jesuíta José Luis Carca pergunta aos 500 fiéis que se juntaram no Colégio Inaciano para iniciar a peregrinação ao parque O'Higgins, cenário da missa campal de terça (16): "Perceberam o quanto fomos agredidos?"
O sacerdote chama sua congregação a recuperar o afeto da população e relembra a atitude de Francisco: assim que saiu do aeroporto, foi rezar no túmulo do "bispo dos pobres" Enrique Alvear. "Há 30 anos, ele foi tachado de marxista-leninista. Hoje é homenageado pelo papa."
Começa a peregrinação no meio da noite. Ninguém cumprimenta os peregrinos. Passamos em frente a varandas vazias e janelas escuras. Só alumbra uma lâmpada na entrada do Night Club Delirio.
Às 3h, do lado de fora do parque, milhares de jovens voluntários orientam os fiéis. O que pega meu ingresso começa a frase, que suponho ser comum para quem frequenta igrejas na era Francisco. "Tudo é amar e..." Diante da minha ignorância, completa: "...e servir". E sorri.
São 8h, e o sol começa a queimar. Depois de uma longa noite de frio ao relento para muitos dos 400 mil espectadores, ouvem-se os alto-falantes de uma parada militar.
É a chegada do papa ao Palácio de La Moneda. Em seu único gesto de autocrítica, o papa manifesta "a dor e a vergonha pelo dano causado às crianças por parte dos membros da Igreja". Essa menção provoca os maiores aplausos no parque O'Higgins.
São 10h, e o sol implacável castiga. Com uma música simplória e repetitiva, o papamóvel atravessa o parque, e começa a missa. Em sua homilia, Francisco cita o renomado jesuíta chileno são Alberto Hurtado. "Se você quer a paz, trabalhe pela justiça."
Entre centenas de bispos e sacerdotes de branco impoluto ao redor do papa está Juan Barros, que acobertou Karadima. À tarde, Francisco visita a prisão feminina de Santiago. Às presas, o papa apela a sua memória cultural de portenho: cita o tango "Yira Yira": "Tudo é igual, vamos lá, que lá no forno vamos nos encontrar".
As presas, que conhecem a amargura dos tangos, dedicaram a ele seu primeiro aplauso. "Nem tudo é igual", disse o papa.
Mas no único gesto concreto que os chilenos pediam, ele acolheu o bispo questionado por cumplicidade com o pedófilo. Bergoglio não afastou Barros de seu rebanho.
ROBERTO HERRSCHER, autor de "Los Viajes del Penelope", é professor de jornalismo na Universidade Alberto Hurtado, no Chile
Tradução de DIEGO ZERBATO
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