Como um vídeo conspiratório sobre ataque na Flórida foi propagado no YouTube

Post caracterizava aluno sobrevivente de massacre como falso ator 

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Imagem retirada de vídeo mostra David Hogg contando sobre massacre em escola na Flórida - Joshua Replogle - 15.fev.2018/Associated Press

John Herrman
The New York Times

A lista de vídeos recomendados pelo YouTube tipicamente inclui clipes engraçados, atualizações postadas pelas personalidades mais populares do serviço de vídeo e trechos de programas de TV que ganharam circulação viral.

Na quarta-feira, por um breve período, o primeiro posto na lista foi ocupado por um vídeo que mostrava David Hogg, que sobreviveu ao massacre da semana passada na Marjory Stoneman Douglas High School, em Parkland, Flórida. A legenda do vídeo definia Hogg, falsamente, como "ator" e não estudante.

O vídeo, postado originalmente em agosto, era um segmento breve de um noticiário local no qual Hogg era entrevistado em Los Angeles por uma emissora local da rede de TV CBS, depois de testemunhar uma altercação entre um salva-vidas e um nadador em Redondo Beach.

Na terça-feira, um usuário do YouTube que usa o nome "mike m" copiou o vídeo e voltou a submetê-lo, com uma nova legenda: "DAVID HOGG O ATOR..."

Com essa seca descrição, "mike m" passou a fazer parte das teorias de conspiração que circulam on-line e afirmam que os sobreviventes do ataque à escola de Parkland, muitos dos quais se pronunciaram recentemente em favor do controle de armas, seriam na verdade "atores de crise" contratados por ativistas de esquerda para difundir suas mensagens.

O vídeo repostado subiu ao longo da noite na lista de recomendações, e na manhã da quarta-feira já havia sido assistido mais de 200 mil vezes.

"Eu não fazia ideia de onde toda aquela atenção estava vindo", disse "mike m" em entrevista via chat online com o "New York Times". "Só percebi que o interesse decolou".

Muitos comentaristas pareciam confusos. "Por que esse vídeo está na lista de recomendados, especialmente na de notícias?", escreveu um deles.

Outros, depois de lerem a legenda que descrevia Hogg como ator, sabiam exatamente o que imaginavam estar vendo: "Esse menino deveria ganhar o Oscar!", escreveu um deles.

Ao meio-dia da quarta-feira, o YouTube retirou o vídeo por violar suas normas contra intimidação e bullying.

Não foi a primeira vez que o YouTube serviu não só como fonte de teorias de conspiração extremas mas como cúmplice em sua rápida difusão.

Depois do massacre de Las Vegas, em outubro, os usuários do YouTube preencheram o vácuo de informações sobre a motivação do homicida com especulações sombrias, lotando o site de vídeos que se tornaram fonte de informações desacreditadas e não comprovadas, entre as quais afirmações de que a tragédia havia sido encenada.

Depois de um homicídio em massa em novembro em uma igreja em Sutherland Springs, Texas, as pessoas que buscavam notícias sobre o acontecimento no YouTube se viram assoladas por vídeos que afirmavam falsamente que o ataque representava uma "operação de fachada" com o objetivo de promover medidas de controle de armas, ou um complô executado pelo chamado movimento "antifa" (ou antifascista).

Depois da mais recente tragédia, que causou 17 mortes na escola secundarista de Parkland, o YouTube parece uma vez mais ter sido apanhado de surpresa por um vídeo cujo objetivo era difundir uma história infundada.

"Em 2017, começamos a adotar mudanças para apontar fontes mais confiáveis de notícias nos resultados de busca, especialmente no caso de notícias urgentes", afirmou o YouTube, que é parte do grupo Google, em comunicado.

"Vimos melhoras, mas em algumas circunstâncias essas melhoras não funcionam rápido o bastante. Além disso, nos últimos 12 meses atualizamos a aplicação de nossa política quanto a intimidação, incluindo em seus termos vídeos falsos que tomem por alvo as vítimas dessas tragédias."

Ao contrário de outros vídeos lunáticos que conquistaram atenção significativa no YouTube recentemente, o clipe mostrando o sobrevivente do ataque em Parkland não se originou de uma organização de mídia que promove teorias da conspiração, como a Infowars, e nem dos populares YouTubers que operam junto às subculturas de extrema direita e facções políticas extremistas.

Em lugar disso, ele foi postado pela conta de "mike m", que não costuma ser atualizada com frequência. Até que o vídeo no qual Hogg aparece fosse postado, a conta contava com menos de uma dúzia de vídeos e menos de mil seguidores.

Ainda que ele tenha se recusado a oferecer muita informação sobre si mesmo ou a fornecer seu nome completo, "mike m" disse que é homem, tem 51 anos e vive no Idaho.

Os vídeos subidos por ele incluíam alguns clipes pouco assistidos que sugerem que é fã fervoroso de teorias da conspiração. O que o levou a postar sobre uma teoria infundada quanto ao ataque em Parkland —afora "ter mais tempo sobrando hoje em dia"— foram posts que ele viu em sites de conspiração populares, como o Godlike Productions.

Ele mencionou comentários no site de que Hogg havia sido "instruído" antes de conceder entrevistas a jornalistas que estavam cobrindo o massacre. Também foi lá que ele encontrou referências ao vídeo que mostrava Hogg na praia em agosto.

Falando à rede de notícias CNN na terça-feira, Hogg rebateu diretamente à explosão de teorias da conspiração sobre ele.

"Não sou ator de crise", disse Hogg, que estava visitando amigos e parentes em Los Angeles quando foi filmado para uma reportagem. "Sou alguém que teve de testemunhar o que aconteceu e viver com as consequências, o que continuo a fazer. Não estou interpretando, e muito menos a mando de alguém".

O vídeo postado por "mike m" logo ganhou força, mesmo assim. O que conduziu esse vídeo à popularidade ——e com isso lhe valeu espaço no aparato promocional do YouTube veio de fora da plataforma. Links ao vídeo proliferaram no 4chan, cujos usuários abraçam alegremente as teorias de conspiração, e onde zombarias sobre as vítimas são frequentes.

Quando o vídeo chegou à lista de recomendados do YouTube, alguns usuários do 4chan celebraram. Uma mensagem no fórum político de extrema direita /pol/. dizia "SUBINDO NO RANKING DOS EUA. ESTAMOS DERRUBANDO O CONDICIONAMENTO".

O vídeo postado por "mike m" também ganhou circulação no Twitter, no Facebook e em reportagens e comentários em sites de conspiração. O vídeo cresceu da maneira tortuosa e inesperada que caracteriza os sucessos virais, e não como uma postagem calculada para manipular os algoritmos do YouTube ao explorar o interesse por notícias urgentes ou por uma tragédia.

O post não tinha título chamativo, não mostrava personalidades reconhecíveis e não propunha grandes teorias. Mas atravessou as salvaguardas do YouTube sem se deter, e continuou a subir não se sabe bem como, expondo a plataforma como vulnerável a influências súbitas, tanto internas quanto externas.

Depois que o YouTube removeu o vídeo, "mike m" disse que sua conta recebeu um "strike" —a maneira pela qual o YouTube adverte os usuários que violaram suas regras e normas. (Com três strikes, a conta do usuário é cancelada.)

"Eu não entendo por que mereço um strike por ter postado um vídeo sobre uma briga na praia", ele disse.

Um segundo vídeo que ele postou sobre o ataque estava ganhando popularidade na manhã da quarta feira, disse "mike m", antes de também ser excluído, o que lhe valeu um segundo strike.

Anônimo e nada arrependido, "mike m" não se desencoraja.

"A MSM esconde coisas sobre esse garoto", ele disse, usando a abreviação que a direita usualmente emprega para "mainstream media", mídia convencional. Perguntado se pensaria duas vezes antes de postar vídeos semelhantes no futuro, ele disse. "Não, de forma alguma".

Mas "mike m" disse que estava preocupado com sua conta ser cancelada, embora acrescentasse que "não vou parar".

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