Descrição de chapéu estado islâmico terrorismo

Ternura e crueldade marcaram mulher forçada pelo Estado Islâmico a fazer partos

Felizes por expandir o grupo terrorista, maridos proibiam remédios para dor às parturientes

Tamer El-Ghobashy
Raqqa (Síria) | Washington Post

Samira al-Nasr fez milhares de partos ao longo de quatro décadas trabalhando como parteira na cidade de Raqqa, mas diz que nada se comparou a um parto ao qual esteve presente dois anos atrás, no papel de doula escolhida a dedo pelo Estado Islâmico.

Momentos após o nascimento do filho de um casal turco —um combatente do EI e sua jovem esposa—, eles tentaram vestir o recém-nascido em um uniforme militar feito sob medida para ele.

O pai declarou orgulhosamente que o menino cresceria e se tornaria militante islâmico. Nasr ficou revoltada. Diz que persuadiu o pai a não obrigar o bebê a usar o uniforme, dizendo que o tecido era grosseiro e poderia ferir sua pele delicada.

Nasr, 66 anos, faz parte dos milhões de pessoas que viveram sob o domínio violento e austero do EI na Síria e no Iraque, mas testemunhou um lado da militância que possivelmente mais ninguém de fora tenha visto.

Ela diz que foi coagida a fazer o parto de inúmeros bebês de famílias do Estado Islâmico, acompanhando os momentos mais íntimos de suas vidas isoladas, em que elementos comuns se alternavam com outros grotescos.

Encarregada pelo EI de fazer os partos dos “lobinhos do califado” pouco depois de o EI ter capturado Raqqa, em 2014, e convertido a cidade em sua capital, Nasr começou a ser chamada às casas de parturientes a qualquer hora do dia ou da noite.

Durante três anos ela foi levada em táxis, acompanhada de militantes armados, às casas de famílias do EI, em sua maioria de estrangeiros.

Nasr diz que suas emoções variavam do medo à raiva, passando por um sentimento de impotência. Não havia nada do orgulho e da alegria que tinham marcado sua carreira até então.

“Eles não tinham o menor respeito pela minha profissão”, ela disse, falando dos militantes e suas esposas. “Eu era tratada como um acessório, não como alguém que está ali para cuidar da parturiente. Eu acompanhava o parto e então eles me punham na rua.”

As próprias crianças do “califado” eram tratadas como meros acessórios. Eram figuras fundamentais em vídeos de propaganda do Estado Islâmico, que frequentemente mostravam crianças de origem europeia, asiática e africana estudando os ensinamentos do EI, brincando ou treinando com armas.

Outros vídeos supostamente mostravam garotos adolescentes executando pessoas consideradas apóstatas ou inimigas.

TERNURA E CRUELDADE

Nas interações pessoais deles com seus filhos, Nasr também testemunhou pais do EI frequentemente sendo cruéis, mas às vezes ternos.

As mulheres jovens geralmente ficavam felizes ao tornar-se mães, e, numa prática que Nasr via como ignorância, mas que na realidade é cada vez mais comum no Ocidente, todas insistiam em segurar seus recém-nascidos e amamentá-los antes mesmo de ter sido cortado o cordão umbilical.

As mulheres frequentemente sussurravam algumas palavras de orações em árabe tosco, exaltando o papel das mães no islã, enquanto abraçavam seus filhos.

Mas os maridos impunham regras rígidas. Proibiam Nasr de dar analgésicos ou outros remédios às parturientes.

Ela disse que algumas das mulheres passavam por dez horas de trabalho de parto sem os opiáceos ou relaxantes musculares que ela costumava dar a mulheres no passado.

“Não me deixavam dar nada”, ela recordou. “Essas mulheres tinham que suportar muita dor.”

Os maridos diziam que a medicação violaria sua tradição religiosa e soltavam frases feitas, dizendo que Deus recompensaria as mulheres por seu sofrimento. As mulheres concordavam, obedientes.

Mas Nasr disse que a razão não era essa. Os homens davam essas desculpas porque temiam que ela pudesse envenenar as mulheres. Ela sentia pena deles.

“Eles não confiavam em medicação que viesse de mim, uma pessoa de fora”, explicou. “Nem sequer me deixavam dar um copo de água à mulher, a não ser que o marido dela tivesse buscado.”

Quando Nasr recordou as mulheres estrangeiras repetindo os chavões de seus maridos sobre recompensas no além, ela imitou o sotaque forte com que elas falavam árabe e riu até ficar com lágrimas em seus olhos azuis.

Mas suas recordações sobre auxiliar nos partos de bebês do EI são marcadas por raiva e repulsa. Ela se sentia humilhada com o tratamento que recebia.

Nasr tem rosto suave e caminha devagar, com dificuldade, mas é uma mulher que tem orgulho de sua habilidade e está acostumada a ser tratada com respeito e a comandar e orientar, não a receber ordens.

Uma placa na fachada de sua casa, que foi em grande medida poupada da devastação sofrida pelas casas vizinhas, anuncia seus serviços e ostenta o nome pelo qual ela é mais conhecida: Umm Alaa.

Significa “mãe de Alaa”, apelido que ela ganhou depois de ter um filho que se tornaria médico em Raqqa.

A placa ostenta três buracos de bala, uma recordação da batalha acirrada do ano passado, quando forças aliadas aos EUA expulsaram o Estado Islâmico da cidade.

A experiência difícil deixou Nasr amarga e confusa. Ela ainda tem dificuldade em aceitar o papel que exerceu em ajudar o “califado” a tentar realizar sua meta de “permanecer e se expandir”.

Em um primeiro momento, ela tentou resistir e não trabalhar para casais do EI, mas as consequências de não cooperar não demoraram a ficar claras: a prisão ou até execução em praça pública.

O marido de Nasr, professor aposentado de árabe, passou alguns dias na cadeia depois de tentar mediar conflito entre a temida polícia da moralidade do Estado Islâmico e uma vizinha que ofendeu o código de conduta.

“Que escolha eu tinha?”, disse Nasr. “Tive de fazer contra minha vontade. Mesmo que eu sentisse medo ou nojo, não interessava. Fui forçada a ajudá-los.”

O atendimento em maternidades era gratuito sob o governo sírio, mas os administradores do EI começaram a cobrar o equivalente a US$ 20 por um parto normal e US$ 50 por uma cesárea em hospitais, para arrecadar recursos para sua cidade-estado.

Mas os militantes tinham um problema, contou Nasr. Não confiavam nos médicos e nas enfermeiras locais para atender suas esposas, temendo que as mães e os bebês pudessem ser envenenados.

No final de 2015, quando a milícia terrorista consolidou seu poder em Raqqa, o vizinho curdo de Nasr foi despejado de sua casa. Em seu lugar chegaram um queniano, sua esposa, três filhos adultos e um genro alemão.

Espalhou-se pelo bairro a notícia de que o queniano era um administrador do EI, que atendia pelo apelido de Abu Walid e era responsável pelos assuntos das viúvas de militantes mortos em combate.

Pouco depois, Abu Walid se apresentou a Nasr. Disse que tinha notado a placa anunciando seus serviços e a convidou a ir à sua casa, que descreveu como “Casa da Viúva”.

Nasr rejeitou o convite, fazendo de conta que era muito fraca para trabalhar e que estaria aposentada.

Mas Abu Walid, que estava armado, não aceitou a recusa. Insistiu que ela o acompanhasse à casa grande.

Ali, Nasr encontrou mulheres grávidas de muitos países. Havia mulheres tunisianas, sauditas, egípcias, iemenitas, somalis, marroquinas, irlandesas, francesas, alemãs, russas, turcas, do Cáucaso e de países africanos que ela não conseguiu identificar.

As esposas sírias chamaram sua atenção. A mais jovem tinha 13 anos, e a mais velha, não mais que 18.

Nasr disse que nos três anos seguintes iria observar que as esposas sírias nunca tinham mais que 18 anos.

“Eles não eram humanos”, disse Nasr, aludindo aos militantes. “Eram um tipo diferente de criatura.”

Ela diz que não se recorda de quantos bebês ajudou a nascer durante a ocupação do Estado Islâmico, dizendo que sempre esperava que “cada um deles fosse o último”. Mas se recorda muito bem do último.

Nos dias finais da batalha para expulsar os militantes da cidade, em outubro, Nasr foi chamada para ir à casa de um combatente somali e sua esposa, iemenita. A mulher já estava em trabalho de parto e sangrava de um ferimento na cabeça.

O combatente disse a Nasr que estava andando de moto em alta velocidade para escapar dos ataques aéreos da coalizão liderada pelos EUA e que sua mulher caíra da traseira da moto.

O marido exigiu que Nasr fizesse o parto, mas a proibiu de tratar o ferimento da mãe.

Sentada em sua casa, Nasr disse que recentemente andou refletindo sobre o tempo que passou como a parteira predileta do Estado Islâmico, tentando avaliar a moralidade seus atos.

Por um lado, ela foi forçada a trabalhar e agiu como teria agido qualquer pessoa em sua posição. Além disso, sentia-se na obrigação moral de dar atendimento médico a bebês, que não têm culpa de nada.

Por outro lado, ela sugeriu, pelo fato de ter cedido às imposições dos militantes e desse modo ter evitado ser castigada ou até morta, sofreu um castigo divino devastador.

Em outubro, dias antes de completar 40 anos, seu filho, Alaa, estava indo à cidade durante um ataque aéreo, para prestar atendimento médico às vítimas. Nasr suplicou que ele não fosse, mas Alaa lhe disse que seria uma desonra para ele, como médico, deixar de dar assistência a pessoas que precisavam dela.

Ele estava cuidando dos sobreviventes de um ataque anterior quando o prédio em que estava foi atingido por uma bomba. Alaa morreu.

“Meu coração está apertado com essa injustiça”, disse Nasr, agora chorando. “Minha dor é profunda.”

Tradução de Clara Allain

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