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Era um tsunami de pessoas com pernas baleadas, diz médica brasileira em Gaza

Anestesista relata maratona de atendimentos a palestinos baleados por soldados de Israel

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Liliana está com uniforme roxo, touca descartável e máscara no pulso; ela posa à esquerda de uma janela verde, com cortina marrom e à direita de um leito de hospital com um lençol branco e um travesseiro vermelho; a parede é de azulejos de cor bege
A anestesista brasileira Liliana Mesquita, 42, durante momento de descanso no Hospital Al Aqsa, na Faixa de Gaza - Yan Boechat/Folhapress
Yan Boechat
Gaza

A anestesista carioca Liliana Mesquita, 42, está em sua 11ª missão (3ª na faixa de Gaza) com os Médicos Sem Fronteiras. Passou a última semana atendendo parte dos milhares de palestinos baleados pelas Forças Armadas israelenses em protestos. Experiente, já atuou no Afeganistão, no Iraque, na República Centro- Africana e no Paquistão.

 

Nós sabíamos que seria um dia difícil, mas não imaginávamos o quanto. Antes de sair da base do Médicos Sem Fronteiras em Gaza para o hospital Al Aqsa naquela segunda [14 de maio, dia da ação de Israel], perguntamos uns aos outros: "Pronto para este dia?". A resposta de todos foi: "Pronto". Havia tensão e apreensão.

Chegamos ao hospital ainda pela manhã. Nos protestos anteriores, os feridos começavam a chegar à tarde. Mas naquele dia foi diferente. Os pacientes começaram a ser trazidos por volta das 11h. No início, eram poucos. Logo eles se tornaram dezenas e, poucas horas depois, tínhamos centenas de baleados. Fiquei sabendo depois que mais de 300 pessoas deram entrada com ferimentos a bala.

Era caótico. Os hospitais têm pouco controle de quem entra e sai. Com os pacientes chegavam amigos e parentes.

Fico no centro cirúrgico, distante da sala de emergência. Naquela tarde, desci para ver o que acontecia. Um homem atingido no pescoço sangrava, e paramédicos tentavam estancar o sangramento. Até que um médico chegou à conclusão de que não poderíamos fazer nada, não tínhamos neurocirurgiões. A bala estava alojada no cérebro. Não sei se ele sobreviveu.

Havia um tsunami de pessoas chegando. Quase todas baleadas nos membros inferiores. Ferimentos realmente graves, em que, se nada fosse feito, a pessoa poderia perder a perna ou morrer. Nosso objetivo era estabilizar os pacientes e oferecer alguma chance de que seus membros não fossem amputados. Em muitos casos, não conseguimos.

A impressão que tínhamos era que os atiradores de elite tinham exatamente esse objetivo: paralisar as pessoas, torná-las inúteis para o resto da vida. Não é algo que eu possa provar, mas era a sensação.

O número de pacientes era tão grande que acho que todos entramos no automático. Houve momentos em que fizemos duas cirurgias na mesma sala, ao mesmo tempo, revezando equipamentos de controle. Quando vimos a dimensão que a coisa tomava, começamos a pensar que novamente teríamos uma guerra.

Nem sei ao certo de quantas cirurgias participei ou quantas horas fiquei naquele hospital —talvez 30, 35. Cheguei na segunda pela manhã e saí apenas na tarde de terça (15). A partir de algum momento, toda a equipe médica perdeu a noção do que estava acontecendo. Mas aí algo aconteceu. Algo que não estava no roteiro.

De repente, em meio àquele caos, uma mulher entrou em trabalho de parto. E teve seu bebê ali, urrando de dor. Estávamos tentando salvar a perna de um rapaz, estraçalhada por um tiro, quando ouvi o choro da criança. Levantei a cabeça e vi um bebê. Foi ali que nos demos conta da dimensão do que vivíamos.

Sou experiente. Já estive em várias zonas de conflito. Vi vítimas em estado pior. Pessoas que perderam metade do corpo em explosões, crianças dilaceradas —e sou do Rio. Trabalhei em hospitais públicos, sei o que um tiro pode fazer.

Mas aqui, de alguma forma, foi diferente. Fiquei muito tocada ao ver a quantidade de jovens que ficarão para sempre com sequelas terríveis, que se tornarão um fardo para suas famílias. Há dias, visitei uma clínica de reabilitação que o MSF acabou de abrir. Foi estranho. Quase chorei ao ver aquele monte de meninos com as pernas estraçalhadas.

Esse é um conflito complexo, e nós do MSF não nos posicionamos. Nunca. Atendemos a todos. Acho que só o absoluto desejo de liberdade é capaz de mover alguém a fazer o que esses jovens fazem. É como um colega me dizia: "Eles já perderam tudo, não há mais nada a temer".

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