Descrição de chapéu The New York Times

Agentes recorrem a flores e gentilezas para recrutar informantes na Rússia

Protestos contra Putin levam Kremlin a voltar a recorrer à tática, comum em tempos soviéticos

Andrew Higgins
Moscou | The New York Times

O vasto aparato de segurança russo frequentemente exibe seu poder por meio de ações brutais: tropas de choque espancando manifestantes, ou homens armados desconhecidos que agridem e às vezes assassinam jornalistas e políticos de oposição.

Mas uma manifestação mais gentil e insidiosa do sistema se evidenciou com o homem cortês, sorridente e bem vestido que compareceu no mês passado ao apartamento em Moscou de Natalia Griaznevich com um buquê de flores na mão.

Apresentando-se apenas como “Andrei”, ele disse a Gryaznevich, 29 , funcionária de uma entidade pró-democracia chamada Rússia Aberta, que gostaria de convidá-la para um café e uma conversa amigável. “Parece que você gosta muito de café”, ele disse, deixando entender que sabia muitas outras coisas também a respeito dela.

Natalia GryaznevichNatalia Gryaznevich, da Rússia Aberta, em seu apartamento em Moscou
Natalia Gryaznevich, da Rússia Aberta, em seu apartamento em Moscou - Serguei Ponomarev/The New York Times

“Ele agiu como se fosse um velho amigo que eu não tinha reconhecido”, recordou Gryaznevich.

Inicialmente perplexa, ela entendeu o que estava acontecendo quando saíram e ele lhe fez inúmeras perguntas sobre suas viagens ao exterior e seus contatos em outros países. Gryaznevich percebeu que “Andrei” estava tentando recrutá-la como informante.

“‘Vamos ser amigos’”, ele teria falado. “Pense em você. Você quer seguir carreira. Com a gente do seu lado, você vai poder ir longe.”

A descrição que ela faz do esforço de recrutamento –que, segundo ela, foi feito sem ameaças— permite um pequeno vislumbre de um dos aspectos mais sigilosos e sinistros do sistema de segurança russo.

Conhecidos em russo como “stukachi” (literalmente “batedores”), um termo soviético de etimologia incerta, os informantes funcionam basicamente como espiões do Estado russo, dentro e fora do país. Eles estão longe de serem tão onipresentes na Rússia hoje quanto eram na Alemanha Oriental ou União Soviética, onde milhões de pessoas costumavam delatar seus amigos e colegas de trabalho.

Mas, depois de ser proibida no início dos anos 1990, a prática de atrair russos para serem informantes, delatando seus concidadãos, parece estar se alastrando outra vez.

Desde que grandes manifestações antigoverno explodiram inesperadamente no inverno de 2011, assustando o Kremlin seriamente, as autoridades estão sedentas de informações confidenciais sobre a oposição doméstica. Uma nova onda de protestos que começou em maio de 2017, embora tenha sido menor que os protestos de 2011, também pegou as autoridades de surpresa –e elevou o valor das informações confidenciais.

É impossível saber quantas pessoas atuam como informantes: as únicas pessoas a falar sobre os esforços de recrutamento são as que resistiram às propostas recebidas.

Viktor Voronkov, diretor do Centro de Pesquisas Sociais Independentes, em São Petersburgo, disse ao jornal russo ​Novaya Gazeta no início do ano que quatro membros de sua equipe lhe contaram ter sido abordados pelo Serviço Federal de Segurança, ou FSB, o sucessor da KGB.

Contatado na semana passada, ele disse que não tomou conhecimento de novas tentativas, mas supõe que muitos outros de seus funcionários tenham sido abordados. “São raros os casos em que as pessoas nos informam dessas coisas”, ele falou, acrescentando que muitas das pessoas abordadas são solicitadas a assinar acordos de sigilo.

Um sinal claro de que os serviços de segurança estão procurando informantes outra vez chegou em 2016, quando o Life, um serviço de notícias russo frequentemente utilizado pelo FSB como canal para vazar informações, revelou que informantes aposentados receberão aposentadorias públicas em troca de seus serviços. No passado, esse incentivo só era oferecido aos funcionários em tempo integral da agência de inteligência.

Mas o principal incentivo para atuar como informante raramente é dinheiro, e sim a promessa de que problemas legais ou outros serão resolvidos prontamente.

Convencido de que a insatisfação na Rússia é em grande medida fruto de forças estrangeiras hostis, o aparato policial russo vem se concentrando cada vez mais em infiltrar organizações com vínculos reais ou imaginados com organizações e governos estrangeiros, disse Mark Galeotti, especialista no sistema de segurança russo junto ao Instituto de Relações Internacionais, em Praga.

Galeotti disse que a busca por informantes “tornou-se muito mais focada” do que era na União Soviética, quando a KGB enchia sua folha salarial de pessoas que transmitiam fofocas inúteis veiculadas em escritórios e âmbitos familiares. Segundo ele, a ênfase hoje é dada em localizar informantes que possam ter informações sigilosas reais sobre organizações terroristas como o Estado Islâmico e também sobre entidades estrangeiras pacíficas que promovem a democracia, algo que o Kremlin encara como uma ameaça perigosa.

Muitas organizações internacionais sem fins lucrativos foram declaradas “indesejáveis” e um perigo à segurança nacional russa, incluindo uma filial londrina da organização de Gryaznevich, Rússia Aberta.

Galeotti disse que o Kremlin está especialmente preocupado com entidades como Rússia Aberta devido a seus vínculos com o bilionário russo exilado Mikhail Khodorkovsky, que, depois de passar quase uma década em campos de prisioneiros na Rússia, hoje vive em Londres e financia uma grande gama de projetos que visam promover a democracia e as liberdades civis na Rússia.

A Rússia Aberta, cujo escritório em Moscou já foi alvo de duas blitze das autoridades, diz que recebe alguns recursos de Khodorkovsky, mas não de seus grupos em Londres que foram declarados indesejáveis.

Representantes da entidade na Rússia insistem que ela não é exatamente uma organização e sim uma aliança de grupos pequenos e inteiramente russos da sociedade civil.

Assustada mas também perplexa com as motivações e a identidade do desconhecido que apareceu na sua porta levando flores, Gryaznevich anotou o telefone residencial dele. Depois de ter pedido conselhos de seu chefe na Rússia Aberta, ela concordou em encontrá-lo.

“Eu não fazia ideia de quem ele era ou do que queria, mas ele era muito educado e bem falante”, recordou Gryaznevich, que havia retornado pouco antes da cidade de Vladivostok, no leste do país, depois de passar uma noite detida pela polícia por ter ajudado a organizar uma conferência na cidade patrocinada pela Rússia Aberta.

Enquanto tomavam um café, “Andrei” deixou claro que sabia de todos os problemas de Gryaznevich com a polícia em Vladivostok –e, algo desconcertante, que sabia muito sobre a vida dela em geral, incluindo suas viagens ao exterior a serviço da Rússia Aberta.

O homem ofereceu ajudá-la a resolver seus problemas legais, explicando que o advogado dela “não poderá proteger você, mas nós podemos” –desde que ela lhes desse ajuda em troca.

A proposta dele, segundo Gryaznevich, foi a seguinte: se ela concordasse em ir a um encontro uma vez por semana para prestar informações, especialmente sobre seus contatos no exterior –quem eram, o que faziam e por que--, ela não precisaria mais se preocupar com a possibilidade de ser perseguida pela polícia e ameaçada de prisão. “Podemos resolver todos esses problemas”, lhe disseram.

Gryaznevich falou que “Andrei” manifestou pouco interesse pelas atividades da Rússia Aberta no país, sobre as quais ele já parecia estar muito bem informado, mas sim por suas interações com estrangeiros.

“Andrei” só teria abandonado seus modos corteses quando Gryaznevich se negou a atuar como informante e recusou o pedido de que mantivesse o encontro deles em segredo. Mesmo então, ela disse, “Andrei” não descambou para as ameaças brutais frequentemente associadas à polícia secreta russa. “Evidentemente não era a primeira vez que ele fazia algo desse tipo”, ela disse.

Tradução de Clara Allain

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