Descrição de chapéu Global Media Venezuela

Venezuelanos fazem garimpo de esgoto em Caracas

O objetivo é encontrar joias ou mesmo cobre para ajudar a matar a fome

Diário de Notícias

Os problemas na Venezuela exigem a quem fica esforço e imaginação permanentes. A hiperinflação faz com que os menus dos restaurantes tenham de ser atualizados pelo menos duas vezes por semana. Quando um paciente dá entrada no hospital, é feita uma estimativa, e, na saída, ele tem de desembolsar mais uns quantos milhões de bolívares. É assim, aos milhões. Um orçamento, para o que quer que seja, tem as horas contadas. Perde a validade pouco tempo depois.

Os salários se tornam ainda mais ridículos. Um professor universitário pode ganhar o equivalente a meia dúzia de euros. Há vários endereços na internet que apresentam números, mas como são muitos díspares, há um que faz uma média e que é seguido por quem quer comprar moeda estrangeira. Sempre uma estimativa.

Sintomático da situação econômica do país é o que se vê no pequeno rio Guaire. A principal via fluvial que atravessa o vale de Caracas acolhe as águas residuais e os esgotos sem nenhum tratamento. É comum ver várias pessoas, a maioria jovens, sem camisa e sem qualquer outra proteção, com as mãos enfiadas na água contaminada à procura de objetos de valor.

O objetivo é encontrar joias, mas se aparecer um fio de cobre pode ser uma ajuda para matar a fome. O processo é simples, passa por retirar o material que encontram, incluindo areias e pedras, para um lugar seco onde é feita uma escolha mais apurada.

Outras vezes, com a água pelos joelhos, as mãos vão tateando o leito escuro. Como é fácil de ver, quem se sujeita a esta atividade fica exposto a várias doenças, pois, os dedos ficam com feridas à medida que percorrem o fundo do rio. Fazem isso porque não encontram alternativa. Perseguem o sonho de encontrar um anel, um fio, uma joia que compense o esforço e o perigo. Perigo esse que não acaba quando termina a jornada. Há sempre a possibilidade de ser assaltado, até por gente com um disfarce de uma autoridade qualquer. É a luta pela sobrevivência.

Há muitos serviços e produtos que estão, como se diz na Venezuela, "dolarizados", ou seja, inacessíveis à maioria das famílias que fazem das tripas coração para arranjar comida para a refeição seguinte. Um empresário na área da panificação da ilha da Madeira conta que um dos empregados pediu para fazer mais um turno de oito horas em troca de uma refeição. "É menos uma boca a comer lá em casa", explicou o funcionário.

É frequente encontrar gente a remexer o lixo. De todas as idades. Velhos e jovens, alguns deles até bem vestidos, de mochila nas costas, procuram os restos dos restos. No mesmo lixo que já foi vasculhado várias vezes. Uma classe média que empobreceu drasticamente.

Há quem, entre a comunidade portuguesa, consiga viver das poupanças. Dinheiro que está fora do país, em moeda estrangeira. Uma vida de esforço. Aos mais pobres, o governo distribui uma caixa com produtos alimentícios e um Cartão da Pátria permite o acesso a alguns produtos, como farinha de milho, azeite, massas, leite a preços controlados. Alguns desses produtos são revendidos a preços que, em alguns casos, chegam a atingir dez vezes mais.

Num centro comercial, em Caracas, o gerente de uma loja de roupa mostra duas camisas iguais, da mesma marca e tamanho, que apenas diferem na cor. Uma custava dois milhões, a outra, 12 milhões de bolívares. Separava-as dois meses na compra. O mesmo gerente, bem vestido, ao lado de quatro funcionários parados à espera de clientes, aponta para uma fila de gente que está do lado de fora da vedação do espaço comercial à espera da chegada de algum produto a custo controlado ao supermercado vizinho e diz: "Se eu estivesse ali, podia esperar umas seis horas, é verdade, mas ganhava mais, num dia, do que aqui, num mês, vendendo camisas".

pessoas vasculham lixos em sacos pretos
Famílias vasculham lixo em Caracas - Meridith Kohut/The New York Times

As contas são fáceis. Um quilo de farinha pode atingir dez vezes esse valor na trapaça. Ora, se conseguir cinco quilos, que é a quantidade máxima que pode ser adquirida e eventualmente juntar a outros produtos, obtém-se num dia o equivalente ao salário mínimo, já com os valores atualizados na última quarta-feira.

Quase todas as transações são feitas por cartão de débito. Há muitas trocas diretas. Numa praça, numa zona industrial, ao lado de um populoso bairro de lata, vende-se de tudo. Impressiona a falta de qualidade dos produtos expostos, desde sapatos velhos, roupas usadas, componentes de celulares, até cigarros à venda por unidade. É possível trocar açúcar por farinha ou azeite.

Insegurança

Respira-se incerteza. Sente-se o clima de insegurança. Nos pequenos gestos do dia a dia. No não atender o celular na rua. Ter um celular barato e algum dinheiro para o eventual assalto. Sucedem-se os avisos, especialmente para quem vem de fora. Cuidado com os motociclistas. A maioria dos assaltos chega por duas rodas. Sempre que possível, não parar nos semáforos nem em operações. Especialmente à noite. Há zonas proibidas, a partir de certa hora, incluindo autoestradas. Uma das estratégias é lançar pregos com várias pontas (chamam-lhes "miguelitos") para furar os pneus. Obrigados a parar, o assalto é quase certo.

Nunca apanhar um táxi, especialmente no aeroporto. Qualquer um pode ser taxista, basta um letreiro em cima do carro. Um computador na bagagem de mão significa vários anos de trabalho. É uma tentação. Cuidado com os policiais e militares fardados, podem ser criminosos disfarçados ou verdadeiros agentes do crime.

Todos os cuidados são poucos se se circula de noite. Vidros escuros fechados, de preferência em caravana com os quatro piscas ligados, pelo menos um dos carros vai com armas, ou pretende dar essa ideia. Um jornal não ligado ao regime --há pelo menos dois jornais que sobrevivem-- ainda noticia que dois cadáveres apareceram amarrados e com sinais de tortura.

Pessoas se amontoam diante de porta aberta de ônibus
Pessoas tentam entram em ônibus após parada do serviço de metrô em Caracas, na quinta (30) - Marco Bello/Reuters

Um amigo relata que roubaram um carro de uns familiares, com o casal lá dentro. "Felizmente que o abandonaram, já fora de Caracas, algum tempo depois. Felizmente porque só ele ficou com as marcas de umas pancadas. Podia ser muito pior. Podiam exigir resgaste."

Quem não ouviu falar de sequestros? E não há confiança para ir à polícia apresentar queixa, pois pode haver agentes envolvidos. São muitos os casos. Raramente até são notícia. É como se não existissem. Crimes impunes. O que mais assusta é a impunidade. A vida parece ter pouco valor. Mata-se porque sim. Uma guerra não declarada, diária, mais mortífera, garantem-me, do que muitas guerras que abrem os telejornais. Não há estatísticas oficiais. Muitos dos crimes acontecem sem qualquer consequência. A falta de meios de investigação, a quantidade de crimes e a falta de respostas dos meios judiciais são dos grandes problemas do país.

A falta de dinheiro vivo é tão grande que um dos negócios mais badalados é a venda do próprio dinheiro. As notas atingem facilmente o dobro do valor facial. Nos bancos não há dinheiro e nos terminais de bancos, quando o têm, a quantidade que se pode levantar é extremamente baixa.

Pelo interior do país, onde a escassez é ainda maior, as diferentes notas de bolívar podem valer 200% a mais. A solução é o cartão. Mas nas agências bancárias não há cartões. Sim, não há cartões. É frequente ver enormes filas para o caixa eletrônico, quando corre a notícia de que há dinheiro disponível. A quantia que se pode levantar é irrisória.

Falta transporte

Ficar "trancado" no trânsito, como se diz em terras venezuelanas, deixou de fazer parte do cotidiano. Os engarrafamentos apenas se dão quando há acidentes (muito frequentes) ou obras na estrada (pouco frequentes). Muitas viaturas foram obrigadas a parar por falta de peças. Quando há, são a custos elevadíssimos. Um pneu, diz-nos um emigrante madeirense, ultrapassa várias vezes o custo da viatura quando foi adquirida. Sucedem-se os relatos de furtos de pneus, até do óleo do motor.

Os transportes públicos estão praticamente paralisados. A procura de táxis baixou significativamente. Alguns profissionais garantem que mais de metade foi obrigada a parar. Ou por falta de peças, baixa procura, mas especialmente por falta de dinheiro vivo. Como não há notas, e as trocas são feitas por cartões, e os taxistas não têm terminais, os clientes não entram. Por falta de ônibus, muitas vezes o transporte de passageiros é feito em caminhões com evidentes falhas de segurança e de conforto. Foi noticiado que apenas 5% da frota de ônibus estaria operando. Os militares são chamados à ação. Um acidente grave em Mérida, uma cidade do interior, com um caminhão que transportava passageiros matou várias pessoas e suscitou uma polêmica nas redes sociais.

Em relação aos táxis, quem se beneficia é a concorrência, feita através de plataformas digitais como a Uber. Aí não é necessário o pagamento direto e serve as classes média e alta. Em Caracas, qualquer carro pode usar o letreiro táxi, basta adquiri-lo, sem qualquer licença prévia. O que pode ser uma aventura recorrer a este serviço, especialmente em zonas consideradas críticas e/ou fora de horas. Mesmo no aeroporto internacional onde, à saída, há vários convites para o transporte.

 
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