'Outsider', presidente da Guatemala volta-se contra 'Lava Jato' do país

Jimmy Morales prometeu em campanha não tolerar corrupção, mas ataca comissão que investiga desvios

Jimmy Morales, presidente da Guatemala, fala na Assembleia Geral da ONU em Nova York
Jimmy Morales, presidente da Guatemala, fala na Assembleia Geral da ONU em Nova York - Timothy A. Clary - 25.set.18/AFP
São Paulo

Ao tomar posse, em 15 de janeiro de 2016, como presidente da Guatemala, o comediante Jimmy Morales, 49, se comprometeu em seu discurso a não tolerar corrupção e roubo. "Isso é algo que podemos cumprir e vamos fazer desde o primeiro dia."

A promessa norteou a campanha que o ajudara a chegar ao cargo quatro meses antes. Ele teve 68% dos votos válidos no segundo turno de uma eleição marcada pela descrença na política tradicional com a revelação de crimes que levaram à renúncia do presidente Otto Pérez Molina e à prisão da vice, Roxanna Baldetti.

Em dois anos de mandato, porém, o lema "nem corrupto, nem ladrão" é visto pelos guatemaltecos que foram às ruas nas últimas semanas como uma piada de mau gosto. 

Acusado de receber US$ 1 milhão (R$ 3,7 milhões) de empresários em caixa dois, Morales voltou-se contra o órgão responsável pelas investigações que, em grande parte, criaram a situação em que sua vitória foi possível.

Instalada em 2007, a Comissão Internacional de Combate à Impunidade (Cicig) não teve seu mandato renovado pelo presidente e deverá ser encerrada até setembro de 2019.

Foram seus investigadores que descobriram o esquema de Pérez Molina e Baldetti, chefes de uma rede que envolvia facilitação do contrabando com apoio da alfândega e tráfico de influência para petroleiras e farmacêuticas.

A comissão começou a se aproximar do entorno do presidente em novembro de 2016, quando a Justiça determinou buscas no Palácio Presidencial. Em janeiro seguinte, foi determinada a prisão preventiva de Sammy Morales, irmão do presidente e também ex-comediante, e de José Manuel Morales, filho de Jimmy. 

Eles foram acusados de fraude e lavagem de dinheiro na compra de cestas de Natal para funcionários públicos em 2013, o que causou um prejuízo de US$ 11 mil (R$ 41 mil) ao erário. Em 25 de agosto, a então procuradora-geral, Thelma Aldana, pediu ao Congresso a retirada do foro especial de Morales no caso do financiamento ilícito. Com os dois pedidos, começou o conflito do presidente com a Cicig.

Na Guatemala, a comissão goza de apoio popular similar ao da Operação Lava Jato no Brasil e ao de suas réplicas no Peru, que levaram a processos contra quatro ex-presidentes e a principal líder opositora.

Segundo o instituto Gallup, 71% dos guatemaltecos apoiavam o órgão em setembro. A ação anticorrupção fez seus principais líderes também se tornarem celebridades, assim como o juiz Sergio Moro.

"As estruturas de colarinho branco nunca haviam sido tocadas na história da Guatemala. Foi uma comissão de sucesso, única no mundo, irrepetível, porque os resultados são contundentes", disse Edie Cux, assessor jurídico da ONG Ação Cidadã, afiliada local da Transparência Internacional.

A Guatemala é considerada pela Transparência Internacional o quarto país mais corrupto das Américas, atrás de Nicarágua, Haiti e Venezuela. O centro-americano caiu 20 posições no ranking mundial desde 2015, passando do posto 123 para o 146 de 180 países —o Brasil está na posição 96.

Mas as operações brasileira e peruana diferem da guatemalteca na forma. A Cicig foi criada com um mandato da ONU e sua atuação depende do Ministério Público, da Polícia Nacional e do Poder Judiciário para colher as provas e acusar e julgar suspeitos.

Foi contra esta mecânica, que funcionava de forma azeitada desde o início da comissão, que Morales se voltou. Dois dias depois do pedido de retirada de sua imunidade, o presidente declarou como persona non grata o colombiano Iván Velásquez, chefe da Cicig, o que o levaria à expulsão.

A decisão seria revertida pelo Tribunal Constitucional dois dias depois. Por outro lado, o presidente conseguiria impedir a retirada de sua imunidade no Congresso, dominado por seu partido, a Frente de Convergência Nacional.

Composta por militares e ex-paramilitares de direita na guerra civil guatemalteca (1960-96) e evangélicos como Morales, a agremiação também rejeitaria dez dias depois uma segunda solicitação de retirada do foro especial, apesar dos protestos.

Em janeiro deste ano, Morales trocaria seu ministro de Governo, pasta que controla a polícia. Para Héctor Silva, pesquisador guatemalteco da ONG Insight Crime, a mudança foi parte do que considera uma guerra à comissão.

"O presidente usou todos os recursos do Estado e sua posição para se desfazer da comissão justamente porque ele se tornou um dos investigados."

Quatro meses depois, Aldana deixaria o Ministério Público e seria substituída por María Consuelo Porras. A Folha apurou que, a partir daí, a celeridade das acusações com base nas investigações da Cicig começou a cair.

Porras, porém, abriu em agosto um pedido de retirada da imunidade de Morales após novas provas de que seu partido teria recebido mais US$ 1,3 milhão (R$ 4,8 milhões) de caixa dois. O anúncio do fim da Cicig foi anunciado no dia 31 como retaliação.

Quatro dias depois, voltaria a impedir o acesso de Velásquez. "Ela se intrometeu em assuntos internos do país, politizando a Justiça e judicializando a política. Abusos que polarizaram a sociedade guatemalteca e criaram uma atmosfera de instabilidade que chega a vulnerar a segurança nacional", disse o presidente na Assembleia-Geral da ONU.

Ele ainda criticaria o que considerou midiatização das acusações e a falta de uso do princípio de presunção da inocência, das prisões preventivas e das delações premiadas.

Procurado pela Folha, Velásquez não quis dar entrevistas e o governo guatemalteco não respondeu às perguntas até a conclusão desta edição.

Nesta semana, a Presidência cassou os vistos de 11 investigadores da Cicig. Já o Ministério Público afastou três promotores anticorrupção.

Enquanto isso, o Congresso manteve o foro de Morales pela terceira vez e relaxou as penas para financiamento de campanha. Caso seja julgado quando deixar o cargo, em 2020, ele estará sujeito a uma pena de um a cinco anos de prisão —antes, era de quatro a 12 anos.

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