Antes de ser morto, saudita Jamal Khashoggi planejava 'exército online' de oposição ao regime

Em mensagens a amigo, jornalista chamou príncipe de 'monstro pacman'

São Paulo

Nos meses antes de sua morte, o jornalista saudita Jamal  Khashoggi trocou centenas de mensagens com um amigo saudita exilado no Canadá nas quais critica duramente o príncipe herdeiro, Mohammed  bin Salman, a quem compara a um "monstro pacman que devora todos à sua frente", e planeja a criação de um movimento jovem de oposição ao regime. O jornalista alerta ainda o amigo a recusar convite do regime para ir a uma embaixada saudita pegar documentos. 

As mais de 400 mensagens de Whatsapp escritas entre outubro de 2017 e agosto de 2018 foram reveladas pelo amigo de Khashoggi, o ativista saudita Omar Abdulaziz, exilado em Montreal, no Canadá, desde 2014. Parte delas foi publicada pela rede americana CNN.

Nelas, Khashoggi diz se preocupar com a ascensão de Bin Salman ao poder e que o príncipe herdeiro não segue a lógica.

"Ele é um monstro pacman. Quanto mais vítimas ele come, mais ele quer. Eu não ficaria surpreso se a opressão atingisse até mesmo aqueles que o apoiam, e depois outros e outros e assim por diante. Deus sabe", escreveu Khashoggi a Abdulaziz em maio deste ano, pouco depois do regime saudita deter quatro mulheres que defendiam o direito das mulheres sauditas dirigirem.

As mensagens, segundo a CNN, mostram que Khashoggi ficou cada vez mais temeroso com os rumos que o regime saudita tomou sob a influência do príncipe herdeiro. "Ele ama força, opresssão e precisa exibi-las. Mas a tirania não tem lógica", escreveu. 

Khashoggi foi morto no consulado saudita em Istambul, na Turquia, em 2 de outubro, em um crime que, segundo a CIA (agência de inteligência americana), foi ordenado pelo príncipe Bin Salman para calar o jornalista, crítico do regime.  

Os dois sauditas exilados planejam ainda usar sua influência criar um movimento jovem online para fazer oposição ao regime. Seria um exército de "abelhas cibernéticas" dedicadas a contra-atacar a propaganda pró-regime nas redes sociais. Os dois já haviam debatido outras propostas como criar um portal para documentar violações de direitos humanos e produzir filmes curtos para distribuição mobile. 

"[Khashoggi] acreditava que o príncipe era o problema e disse que essa criança deve ser impedida", disse Abdulaziz à CNN. "Nós não temos Parlamento, nós temos apenas o Twitter", afirmou o ativista, acrescentando que a rede social é também a arma mais poderosa do regime saudita.

O projeto dos dois opositores envolvia dois elementos chaves, segundo a CNN, enviar chips de celular estrangeiros para dissidentes na Arábia Saudita para que pudessem enviar tuítes sem seres rastreados pelo governo e apoio financeiro. Khashoggi planejava juntar discretamente ao menos US$ 30 mil de doadores. 

Em agosto, Abdulaziz avisou Khashoggi que o regime saudita descobriu os planos para a criação do movimento online e alerta que várias pessoas foram detidas. O jornalista responde ao amigo: "que Deus nos ajude".

Abdulaziz disse que seu celular foi hackeado com um sistema de nível militar. Ele afirmou à CNN que os textos que trocou com o jornalista tiveram um grande papel em seu assassinato.

Ele está processando a empresa israelense NSO Group, que inventou o software que teria sido usado em seu celular para acessar as mensagens e que já teria sido usado pelo regime saudita para hackear as comunicações de ao menos dois outros opositores. "Eu sinto muito. [...] A culpa está me matando", disse Abdulaziz à rede americana.

Três meses antes, em maio, Abdulaziz contou a Khashoggi que dois emissários do regime saudita pediram para encontrá-lo em Montreal. Ele concordou e gravou secretamente as dez horas de conversas ao longo de cinco dias.

Os dois representantes, que se identificam apenas como Abdullah e Malek, dizem ao ativista que foram enviados sob ordem do próprio príncipe herdeiro para oferecer-lhe um emprego. 

"Nós viemos até você com uma mensagem de Mohammed bin Salman e suas garantias a você", diz um deles nas gravações, às quais a CNN teve acesso. Eles recomendam que Abdulaziz visite a embaixada saudita para pegar alguns documentos. 

O ativista contou a oferta para Khashoggi, que o orientou a não ir até o prédio diplomático e encontrar os representantes do regime saudita apenas em locais públicos.

O jornalista não seguiu o próprio conselho e entrou sozinho no consulado saudita em Istambul para pegar papéis necessários para se casar com sua noiva turca. Ele nunca mais foi visto.

Segundo a investigação da CIA sobre o caso, o irmão do príncipe Khalid bin Salman, embaixador saudita nos EUA, ligou para Khashoggi para orientá-lo a ir ao consulado em Istambul para pegar documentos e deu a ele garantias de que estaria seguro. Não está claro se Khalid sabia que Khashoggi seria morto, mas ele fez a ligação, interceptada pela inteligência americana, a pedido de seu irmão.

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