Com batom comestível, indústria da beleza mira crianças pequenas na Coreia do Sul

Uso de cosméticos por meninas em idade pré-escolar cresce no país asiático

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Crianças em salão de beleza na Coreia do Sul
Menina usa batom para crianças no PriPara Kids Cafe, em Yongin, na Coreia do Sul - Jean Chung/Washington Post
Min Joo Kim Simon Denyer
Seul | The Washington Post

Yang Hye-Ji estruturou sua rotina matinal no ano passado, quando estava no jardim de infância. Uniforme? Vestido. Lição de casa? Feita.

Maquiagem? É claro.

“A maquiagem me deixa bonitinha”, explicou a garota de sete anos na segunda vez que foi ao spa-salão de beleza ShuShu & Sassy, em Seul.

Ela estava envolta num robe cor-de-rosa tamanho infantil, com os cabelos presos por uma faixa de coelhinho. Seu rosto estava sendo retocado levemente com uma esponja. Nos lábios, um brilho cor-de-rosa.

A indústria de cosméticos sul-coreana, conhecida como k-beauty (beleza sul-coreana), é uma força econômica crescente na Ásia e virou fenômeno mundial, sendo conhecida por pelos tratamentos rigorosos e o passo a passo que preconiza.

Mas as normas de beleza impõem pressão enorme às mulheres sul-coreanas, convertendo o país em um dos maiores centros mundiais de cirurgia plástica. E, cada vez mais, a indústria da beleza tem como alvo meninas cada vez menores.

Esse fato vem gerando receios que resvalam em muitas das discussões sociais fundamentais na Coreia do Sul: até que ponto a sociedade deve ou não valorizar a beleza, se as mensagens sobre beleza expulsam outras aspirações da cabeça das meninas, se é sequer correto acrescentar mais pressão a uma infância já sobrecarregada por horários letivos muito longos e exames escolares cujos resultados podem definir o futuro das crianças.

Crianças em salão de beleza na Coreia do Sul
Spa infantil ShuShu & Sassy em Seul - Jean Chung/Washington Post

“As heroínas de quadrinhos que as menininhas admiram são totalmente maquiadas dos pés à cabeça”, disse Yoon-Kim Je-yeong, professora do Instituto de Corpo e Cultura da Universidade Konkuk, em Seul.

“Quando colocam a maquiagem e o vestido para imitar as personagens, as meninas interiorizam a ideia de que o sucesso de uma mulher está estreitamente ligado à beleza.”

Os anunciantes não primam pela sutileza.

Um outdoor de kits de maquiagem para meninas de seis anos traz uma foto de uma garotinha de uniforme escolar passando batom, com a legenda: “Eu observo minha mãe e sigo seu exemplo. Estou crescendo hoje.”

Um vídeo no YouTube de uma garota de sete anos passando batom, intitulado “Quero usar maquiagem como a mamãe”, já foi visto 4,3 milhões de vezes. Outros vídeos semelhantes mostram garotinhas compartilhando sua “rotina de maquiagem para a escola primária” ou “abrindo meu kit de maquiagem da Hello Kitty”.

A ShuShu Cosmetics é pioneira no esforço do k-beauty para vender para crianças. Fundada em 2013, a empresa opera 19 butiques espalhadas pela Coreia do Sul, oferecendo cosméticos “mais saudáveis” para crianças, como esmalte de unhas solúvel em água e batons não tóxicos em cores “comestíveis”.

Há tatuagens e brincos adesivos, um creme de limpeza facial que “derrota o sol”, sabonete “menina bonita” e xampu de leite de cabras com o slogan “eu não sou bebê”.

No spa-salão de beleza, meninas de 4 a 10 anos podem curtir um tratamento completo, por US$ 25 a US$ 35, que inclui banho para os pés, massagem dos pés e panturrilhas, máscara facial, maquiagem, manicure e pedicure.

“O lema de nossos salões é que aqui as crianças podem brincar enquanto acompanham suas mães”, disse Grace Kim, gerente da ShuShu Cosmetics. “Nossos produtos são de uso seguro também para grávidas.”

Criança em salão de beleza na Coreia do Sul
Menina canta e dança em sala de karaokê no Pripara Kids Café - Jean Chung/Washington Post

A tendência da beleza para meninas pequenas não chega a limitar-se à Coreia do Sul. Kylie Jenner montou um império de cosméticos que movimenta estimados US$ 900 milhões e é voltado principalmente às meninas adolescentes. Vloggers de beleza mirins são populares também nos Estados Unidos e outros países.

Acadêmicos de várias vertentes analisam há décadas o impacto da pressão exercida sobre adolescentes e mulheres jovens no Ocidente para se adequarem a padrões pouco realistas de aparência e tipo corporal.

Na Coreia do Sul, porém, essa preocupação agora também abrange meninas tão pequenas que mal sabem ler as embalagens dos produtos de beleza voltados a crianças de idade pré-escolar.

A indústria da beleza na Coreia do Sul é uma das dez maiores do mundo, movimentando mais de US$ 10 bilhões. Os sul-coreanos gastaram US$ 45 per capita com cosméticos em 2017, mais que os US$ 37 dos americanos e bem acima da média global de US$ 21, segundo a empresa de pesquisas de mercado Mintel.

O índice de cirurgias plásticas na Coreia do Sul é um dos mais altos do mundo. Uma em cada três mulheres de 19 a 29 anos diz que já se submeteu a procedimentos desse tipo, especialmente cirurgia das pálpebras, segundo o Instituto Gallup. De acordo com um estudo de 2017 da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica, o país é campeão mundial no número de cirurgiões plásticos per capita.

O k-beauty também está se popularizando nos Estados Unidos. No mês passado a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York, compartilhou na internet sua rotina de cuidados com a pele, inspirada no processo trabalhoso de vários passos do k-beauty, envolvendo todo um arsenal de produtos.

A ShuShu já está vendendo seus cosméticos para crianças em Singapura e na Tailândia. A empresa pretende expandir suas vendas para os EUA e outros países.

O mercado de beleza infantil está crescendo, e a maquiagem para crianças é promovida como “uma nova cultura de brincadeira infantil”, disse Lee Hwa-Jun, especialista da Mintel na indústria sul-coreana da beleza. “As empresas de cosméticos sul-coreanas estão cada vez mais interessadas nas crianças como potenciais novas consumidoras”, ela explicou.

Algumas mulheres já estão reagindo contra a nova moda.

Crianças em salão de beleza na Coreia do Sul
Crianças no PriPara Kids Cafe, na Coreia do Sul - Jean Chung/Washington Post

A maquiadora free-lancer Seo Ga-ram anunciou que vai recusar pedidos de clientes para maquiar crianças.
“Acho totalmente bizarro que kits de maquiagem de verdade estejam tomando o lugar de brinquedos”, ela escreveu em maio em um post no Facebook. “Por favor parem de consumir imagens de crianças posando com blush nas bochechas, lábios muito vermelhos e cabelos cacheados no salão.”

Mesmo assim, parece impossível frear a tendência, disse Kim Ju-duck, professor de estudos de beleza na Universidade Feminina Sungshin, em Seul. A mídia mostra cada vez mais imagens de meninas pequenas usando maquiagem, e há cosméticos acessíveis para meninas menores e pré-adolescentes.

Kim fez uma pesquisa em 2016 com 288 meninas na escola primária e constatou que 42% delas usavam maquiagem. A proporção teria subido desde então.

No Café PriPara Kids, nos arredores de Seul, meninas de 4 a 9 anos podem se fantasiar como sua personagem favorita de anime, fazer um tratamento de beleza e receber uma maquiagem leve. Podem pular no trampolim, comprar comida numa loja de brinquedo, percorrer uma passarela, cantar sua canção favorita de k-pop numa câmara de gravação e dançar num estúdio com as paredes forradas de espelhos.

A gerente do estabelecimento, Moon Young-sook, disse que o PriPara é “um espaço divertido para as crianças aprenderem sobre beleza e cuidarem de si próprias em um ambiente sem riscos”.

“As meninas gostam naturalmente de brincar com a maquiagem de suas mães”, ela explicou. “Em vez de passarem o batom da mamãe, cheio de substâncias químicas, a maquiagem de mentirinha que usamos aqui é um jeito mais seguro para as meninas realizarem seus sonhos.”

Kwon ji-hyun, 36, levou sua filha de seis anos e filho de dois anos ao café recentemente. Ela disse que o espaço reflete “as fantasias das meninas, a psique delas”.

“É verdade que esse espaço mergulha a criança muito cedo em um papel de gênero”, ela admitiu. “Mas minha filha não tem um papel de gênero muito fechado. Eu não a criei para ter uma ideia muito rígida sobre os papéis de gênero.”

Os críticos, porém, enxergam a tendência como sendo prejudicial.

“Das divas do k-pop até os cosméticos do k-beauty, o mercado que capitaliza em cima da objetificação das mulheres virou um ‘oceano vermelho’ hipersaturado na Coreia do Sul”, disse Yoon-Kim da Universidade Konkuk, usando um termo que descreve um mercado em que a concorrência é acirradíssima.

“O mercado enxerga nas consumidoras mirins um ‘oceano azul’ de expansão possível. Está pronto para instigar as inseguranças delas com sua aparência e ganhar dinheiro com isso.”

Produtos em salão de beleza na Coreia do Sul
Produtos de beleza para crianças no salão ShuShu & Sassy, em Seul - Jean Chung/Washington Post

Tradução de Clara Allain.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.