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Guerra que forjou rivalidade entre Rússia e Ocidente revive em livro

Obra de Orlando Figes traz relato vívido do conflito do século 19 na Crimeia, com ecos até hoje

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Lápides sobre valas comuns de soldados russos no cemitério militar da Irmandade, em Sebastopol, que viveu cerco na Guerra da Crimeia - Igor Gielow/Folhapress
Crimeia

‚Na segunda passada (18), dia em que foi celebrar o quinto aniversário da anexação da Crimeia pela Rússia, o presidente Vladimir Putin escolheu como ponto alto de sua visita à cidade de Sebastopol a deposição de flores no monumento ao almirante Vladimir Kornilov, no monte Malakhov.

Ali, uma cruz feita de balas de canhão marca onde um dos organizadores da defesa da principal cidade da península morreu, no primeiro dia dos quase 11 meses de um cerco brutal que definiu a relação entre a Rússia e o Ocidente.

Passados 163 anos de seu fim, a Guerra da Crimeia parece perdida nas brumas de outros conflitos mundiais do século 20, dos quais ela foi uma espécie de prólogo.

Mas um passeio pelo noticiário mostra que vários elementos daquele embate estão vivos: a russofobia alimentada pela mídia britânica, a pressão de fake news, o ressentimento de Moscou com o Ocidente, a própria Crimeia como campo de batalha.

Com isso, ganha relevância o lançamento no Brasil de uma obra maiúscula sobre a guerra que opôs Rússia a uma aliança entre franceses, ingleses, sardos e turcos otomanos de 1853 a 1856.
Trata-se de "Crimeia" (editora Record), de Orlando Figes, famoso por suas leituras do espírito russo em obras como "Uma história cultural da Rússia" (Record, 2017).

Aqui, ele entrega o que seu público espera: um misto de erudição e acessibilidade, com detalhismo que serve de guia para quem tiver a oportunidade de visitar a Crimeia hoje.

Figes, um crítico de Putin, lançou o livro em 2010, antes da anexação ocorrida na esteira do golpe que derrubou um governo amigo do Kremlin na Ucrânia quatro anos depois. Mas a obra segue atual.

Não é um livro infalível, ao contrário. Figes tenta construir uma narrativa segundo a qual a guerra se deu por uma noção messiânica do czar Nicolau 1º: ele queria cumprir o papel inspirado por antecessores de comandar o mundo ortodoxo a partir do desmantelamento do Império Otomano, sendo a Terra Santa a joia da coroa a conquistar.

Isso é verdade, e não é por acaso que Putin reabilitou a figura do antigo imperador e se aliou à Igreja Ortodoxa para reconstruir uma noção de identidade nacional russa nos seus quase 20 anos no poder.

Mas fervor religioso não explica tudo no complexo mundo do Grande Jogo, as disputas entre Rússia e Inglaterra pela Ásia Central no século 19. Pouco a pouco, Figes acaba por afrouxar esse nó discursivo e abraça mais as nuances políticas e econômicas.

Isso não tira o interesse dos vários capítulos em que se desfia o contexto da época.

A descrição de um tumulto homicida na Páscoa de 1846 em Jerusalém ressoa para qualquer turista que ficou intrigado ao visitar o Santo Sepulcro: cada pedaço da igreja é comandado por uma facção cristã diferente: ortodoxos gregos e armênios, católicos e coptas, entre outros.

Enfraquecida a explicação religiosa, Figes também emula a dificuldade de historiadores que o antecederam na tarefa ao estabelecer os reais motivos para a conflagração --a maior do século 19, matando 750 mil pessoas com o uso inovador de tecnologias que ganhariam escala industrial na Grande Guerra de 1914.

Não é de se estranhar. Otomanos eram o adversário central da Europa cristã por séculos. Os franceses sob Napoleão Bonaparte haviam sido esmagados pelos britânicos em 1812, a ordem europeia estava assentada na aliança entre austríacos, prussianos e russos. Aos poucos, o cipoal de interesses metamorfoseou-se.

Quando a cronologia do conflito se impõe, a partir do erro de cálculo de Nicolau ao ocupar províncias otomanas na foz do Danúbio em 1853, Figes brilha. O relato ganha clareza com a profusão de fontes dos lados beligerantes, de soldados a premiês, passando por czares e sultões.

Ajuda o calibre da matéria-prima. A Guerra da Crimeia foi a primeira coberta pelo jornalismo, progressivamente auxiliado pelo telégrafo --uma revolução análoga à introdução do tempo real no noticiário do século 21.
 

Monumento ao almirante Kornilov, no monte Malakhov - Igor Gielow/Folhapress


Figes bebe muito do cálice do futuro gigante literário Lev Tolstói, então um conde russo que se tornou oficial de artilharia durante o ponto focal da guerra, o cerco aliado de 1854-55 a Sebastopol.

Sua experiência com a brutalidade do combate gerou os "Contos de Sebastopol", parte final de sua trilogia autobiográfica e preâmbulo do clássico "Guerra e Paz".

Tolstói está por toda a Sebastopol moderna, a começar por um grande cartaz no começo da avenida Lênin, a principal. Figes retoma seu olhar sobre o misto de "bela cidade e acampamento militar", como escreveu o russo.

Hoje, a mesma Frota do Mar Negro russa lá instalada após a tomada da Crimeia dos otomanos em 1793 ocupa o centro da vida da cidade.

O fato de ser um território que as Nações Unidas reconhecem como ucraniano, como foi de 1954 a 2014, garante um latente clima de vigilância sobre a calma cotidiana.

"Era estranho ver como as pessoas levavam vidas normais (...) enquanto tudo ao redor deles era um campo de batalha e podiam ser mortos a qualquer momento", observou o oficial Ievguêni Ertchov ao chegar à cidade sitiada, reproduzido por Figes. A realidade de hoje não é tão dramática, claro, mas o eco é claro.

O historiador traz também os nomes míticos do conflito. O mais fascinante é Pavel Nakhimov, o almirante que destruiu a frota turca no começo das hostilidades e que morreu poucos meses depois de Kornilov ao ser atingido por um tiro no rosto a uns 100 metros do lugar em que seu colega havia tombado.

Hoje, uma placa celebra o ponto do ferimento fatal no local, o morro de Malakhov. Foi ali que as forças francesas romperam a defesa da cidade em 1855, determinando a derrota russa no ano seguinte.

Hoje, é um parque plácido com todos esses símbolos, mas também com "jovem mãe passeando serenamente com o carrinho de bebê, crianças correndo e brincando", como anotou Ertchov.

A cidade tem três grandes cemitérios militares, abundantes em covas rasas, mas a cada escavação são encontrados restos dos 250 mil russos mortos no cerco --o país perdeu cerca de 450 mil soldados, a maioria para doenças. 

Sebastopol cairia novamente na Segunda Guerra. Morreram 180 mil soviéticos na invasão de 1941-42, que resultou em ocupação até 1944.

Sebastopol é uma cidade viva, mas também uma necrópole. O escopo do cerco pode ser mais bem visualizado hoje com uma visita ao magnífico panorama de Sebastopol, uma pintura monumental inaugurada em um prédio construído para ela em 1905.

Apesar do nome, a Guerra da Crimeia foi um conflito que se estendeu por teatros como os Bálcãs e mesmo Kamchatka, no Pacífico russo. Seus sinais estão espalhados.

Na capital francesa, você anda pelo bulevar de Sebastopol e toma metrô em estação homônima, e a princesa Diana morreu em 1997 sob a ponte de Alma --nome da primeira batalha em solo crimeu, vencida pelos aliados.

Em francês, Malakhov virou Malakoff, nomeando um bairro de Paris e torres que lembravam o bastião mundo afora. Uma delas, lembra Figes, fica em Recife.

Aqui, a edição brasileira escorrega e não corrige o equívoco do historiador, para quem a capital pernambucana foi "colonizada por franceses" depois da guerra. Ela fora holandesa séculos antes, e a torre ganhou seu nome porque notícias da guerra eram consumidas avidamente mesmo no Império do Brasil.

A propósito, a qualidade literária de Figes, óbvia no texto em inglês, sofre com a tradução um tanto descuidada.

Há outras reminiscências. Motociclistas em São Paulo compram balaclavas, a máscara criada pelos ingleses para aguentar o frio durante a batalha na cidade homônima, hoje famosa por sua bela baía.
No caso britânico, Figes examina o profundo impacto na psiquê do país. A guerra explicitou a impropriedade do comando militar do país, recheado de aristocratas separados de seus soldados.

A "Carga da Brigada Ligeira", poema épico de lorde Tennyson, é desmascarado pelo que é: obra de propaganda. Até o papel da mítica enfermeira britânica Florence Nightingale é relativizado.

Os otomanos são menos escrutinados por Figes, talvez por menor quantidade de fontes originais.
Já a Rússia, até pela inclinação prévia do historiador, recebe tratamento privilegiado. Há algum exagero de anamnese ao dizer que Nicolau era um doente mental limítrofe, mas os detalhes que chegam às páginas são incríveis.

O ascético czar carregava sua cama de campanha e, quando tentou convencer a rainha Vitória a se aliar a ele dez anos antes da guerra, assustou seus anfitriões palacianos em Londres ao pedir feno para preencher o saco de couro que usava como colchão.

Por Figes ficamos sabendo que o príncipe Mentchikov, comandante russo na Crimeia, assistiu à derrota de suas tropas na estreia em combate de uma carruagem cheia de mulheres e bebida.

Outro ponto atualíssimo é o papel da imprensa, principalmente, mas não só, a britânica no fomento da guerra. Para Figes, foi o primeiro conflito determinado pela pressão de uma opinião pública manipulada, e pululavam versões vitorianas das fake news.

A russofobia que hoje é denunciada pelo Kremlin começa ali, condensando desconfianças de vários anos sobre as intenções imperialistas --de resto, reais-- dos russos.

Sua contrapartida russa está lá, mas mais como um fenômeno de elite aristocrática, dado que não havia classe média burguesa ou imprensa livre no feudalismo czarista.

Mais importante, o rancor russo pela aliança da Europa cristã com os inimigos muçulmanos nunca foi perdoada.

O livro ambicioso e algo falho de Figes é, além de boa leitura, um útil mapa para entender as raízes de um dos conflitos centrais do nosso tempo.

Crimeia

  • Autor Orlando Figes
  • Editora Record
  • Tradução Alexandre Martins
  • Preço R$ 104,90 (602 págs.)
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