Serei uma pedra contra racistas, diz brasileira eleita na Espanha

Maria Dantas, 49, é a primeira brasileira eleita deputada no país

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Madri

Maria Dantas, 49, primeira brasileira eleita para o Congresso de Deputados da Espanha, promete ser uma pedra no caminho dos projetos da ultradireita, que volta ao Legislativo nacional após um hiato de 40 anos.

Sergipana radicada em Barcelona há 25 anos, ela concorreu como quinto nome da lista da Esquerda Republicana (ER), partido independentista que foi o mais votado na Catalunha no último domingo (28) –um feito inédito para a causa separatista.

Maria Dantas veste camisa com desenho da vereadora do Rio, Marielle Fanco, assassinada em 2018
Maria Dantas, a primeira brasileira eleita para o parlamento espanhol - Mariana Araujo

Ainda não está definida a composição do futuro governo, mas é bem possível que o arco de alianças liderado pelo socialista Pedro Sánchez, atual primeiro-ministro que parte para um segundo mandato, inclua o ER.

O premiê, entretanto, já disse que não vai reconhecer o direito catalão à autodeterminação, como pleiteiam o partido de Dantas e outros da região.

Em entrevista, a futura deputada recorda o longo caminho até o Congresso (com “bicos” como babá, cuidadora de idosos e passeadora de cães, entre outros) e diz que conhecidos se assustaram com sua decisão de passar da atuação em movimentos sociais para a política institucional.

Além disso, adianta alguns projetos que pretende submeter aos 349 colegas de plenário a partir do fim de maio, quando começam os trabalhos da nova legislatura.

Por que a senhora decidiu deixar o Brasil, em 1994?

Eu era da Polícia Civil. Estava me separando, era jovem e queria “dar um plus” na minha vida profissional. Vendi meu Uno de segunda mão branquinho para fazer um curso de especialização em direito ambiental em São Paulo.

Só que, naquela época, a gente ia de manhã comprar leite e de tarde já era o dobro. Ficava mais caro fazer uma especialização de um ano em São Paulo do que vir para Barcelona, outro grande centro do direito ambiental. Resolvi vir com uma amiga.

O que fez profissionalmente desde sua chegada a Barcelona?

É mais fácil perguntar o que eu não fiz [risos]. Minha vida migratória é bem parecida com a de muitas pessoas que chegam aqui e que têm a facilidade de ter pele branca, porque negros e pessoas com traços indígenas sofrem racismo.

Passei por muitos perrengues para conseguir a documentação, mas, como sou sergipana cabra da peste, coloquei a peixeira no meio dos dentes e fui para frente.

Fui empregada doméstica sem carteira assinada, garçonete, passeei cachorro, cuidei de idosos. Saía do curso na universidade e ia lavar latrina.

Primeiro eu tive um visto de residência. A nacionalidade veio há dez, 15 anos. Depois que obtive o visto e pude trabalhar legalmente, passei por empresas de informática na parte comercial e na administrativa.

Consegui emprego na minha área de formação, mas não podia me dar ao luxo de ganhar apenas 1.000 euros por mês. Tinha que sustentar duas crianças pequenas.

Mais tarde, cursei uma formação em finanças. Arranjei com isso o trabalho em que estou até hoje, no departamento financeiro de uma empresa de alcance ibérico.

Dedico todo o meu tempo livre a movimentos sociais de base, que não têm registro, não são ONGs, como a Unidade contra o Fascismo e o Racismo, em que estou há dez anos, os Latinos pela Catalunha, a Emergência Fronteira Sul e o SOS Racismo.

Quando decidiu ingressar na política?

Nunca pensei em dar esse passo. As pessoas que me conhecem se assustaram. Acontece que estamos passando por um período complicado aqui na Catalunha, de agressão à liberdade de expressão, de agressão ao povo.

No dia 1° de outubro de 2017, o povo da Catalunha quis votar num plebiscito sobre a autodeterminação e foi castigado fisicamente [refere-se à repressão da consulta popular pela polícia nacional espanhola, vista por muitos como desproporcional]. Eu fui vítima disso, a minha fila também.

Também vivemos um processo de militarização e externalização das fronteiras europeias. A Espanha paga ao Marrocos para que impeça a vinda [pelo Mediterrâneo] de imigrantes da África subsaariana.

E há também o fato de a extrema direita ter saído do armário, estar em ascensão em vários países. Isso em um continente que já era racista e xenófobo. Para alguns espanhóis, não é mais preciso ter vergonha do racismo. O Vox acabou de se eleger. Vai ser o primeiro partido de extrema direita no Congresso em 40 anos.

Estudo há muito tempo o fascismo e creio poder ser uma pedra pequena, mas uma pedra, contra os discursos dessa direita racista, fascista, misógina, machista, homofóbica e islamofóbica.    

Pedro Sánchez já disse que não haverá novo plebiscito nem indulto aos líderes separatistas agora julgados por organizar a consulta de 2017. Como fica o movimento independentista?

A Catalunha quer dialogar [com o governo central]. A Esquerda Republicana, que defende a independência, ganhou na região. A ideia do plebiscito é de justiça social, de diversidade e inclusão, de interculturalidade. Fora da Catalunha, explicam muito mal a ideia do soberanismo. Vou começar a explicar isso.

Espero que os socialistas não façam nenhum tipo de acordo com a direita ou com a extrema direita.

Temos pé firme pela liberação dos presos políticos [líderes do movimento de 2017] e pela possibilidade de regresso dos ex-dirigentes que estão exilados [como Carles Puigdemont, ex-presidente regional catalão].

Trata-se de um julgamento com cheiro pós-franquista e suspensão de liberdades individuais.

Precisamos entender um pouco a história da Espanha depois do franquismo. Quando se fala em nacionalismo no Brasil, o pessoal pensa no Sul, nos fascistas que desejam se separar. Mas processo de independência tem de todo tipo.

O que defendo é que o povo possa decidir na urna, pela via democrática. Há juristas que defendem que a Constituição da Espanha permite, sim, essa consulta.

Qual será o seu foco de atuação?

A primeira bandeira vai ser a eliminação da Lei de Imigração, de viés racista e assassino, que mata gente nas fronteiras.

Além disso, reproduzir a estrutura de direitos humanos da Catalunha no plano nacional e batalhar pelo fechamento dos CIEs [Centros de Internação de Estrangeiros, unidades não prisionais que acolhem cidadãos em vias de expulsão], que são Guantánamos no território europeu.

Também quero trabalhar para pôr fim à externalização e à militarização das fronteiras e criar uma lei geral de combate ao racismo.

Por fim, pretendo atuar para tornar ilegais grupos fascistas e franquistas. Existem milícias fascistas nas ruas da Espanha batendo em gente negra. Isso tem que ser dito lá fora.

Mas esses projetos de alcance nacional não são contraditórios com a agenda pró-separatismo do seu partido?

Nas listas da Esquerda Republicana, não vai só gente independentista.

Não gosto de utilizar a palavra separatista, porque tem conotação pejorativa. Prefiro falar em soberanista, pró-plebiscito.

Se no referendo sai que não [que a maioria não quer deixar a Espanha para formar outro Estado], no dia seguinte vou advogar pelo não. A única coisa que queremos é que o povo da Catalunha possa decidir.      

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