Rússia liberta repórter investigativo acusado injustamente de tráfico

Prisão de Ivan Golunov gerou movimento inédito na sociedade civil, pressionando Putin

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São Paulo

O Ministério do Interior da Rússia removeu a acusação de tráfico de drogas e ordenou a libertação do jornalista investigativo Ivan Golunov, em reação a uma inédita mobilização de parte da elite do país.

Golunov, 36, havia sido preso após encontrar um amigo na noite de quinta-feira (6). Policiais disfarçados o abordaram e disseram que ele tinha um pacote com pó branco em sua mochila, levando-o então para sua casa e depois para uma delegacia de Moscou.

Lá, ele só pôde falar com conhecidos às 3h30 de sexta, após ser interrogado e espancado. A polícia então disse que encontrou um pequeno laboratório para o preparo de drogas em seu apartamento. Se condenado, poderia pegar entre 10 e 20 anos de cadeia.

O jornalista russo Ivan Golunov com segura seu cachorro, Margo, durante entrevista coletiva em Moscou
O jornalista russo Ivan Golunov com segura seu cachorro, Margo, durante entrevista coletiva em Moscou - Shamil Zhumatov /Reuters

“É claro que foi uma armação”, disse a jornalista russa Nastia Dagaeva, colunista da edição russa da revista Forbes, que está em Riga (Letônia) e participou de um protesto na frente da embaixada de seu país nesta terça (11).

O real motivo da detenção estava, segundo colegas, no incômodo provocado pela mais recente reportagem de Golunov, sobre uma máfia que controla o serviço funerário de Moscou —tema bastante familiar para ouvidos brasileiros. Segundo sua apuração, a organização tinha o envolvimento de membros do poderoso FSB, a principal agência herdeira da antiga KGB soviética.

Golunov trabalhou em diversos veículos russos, e recentemente publicava reportagens no site independente Meduza, que teve de mudar seu escritório de Moscou para Riga por temer represálias.

Casos assim são comuns na Rússia. O representante de uma importante ONG de direitos humanos na Tchetchênia passou meses preso sob acusação de porte de drogas —e ele, um muçulmano praticante, nem bebe álcool.

A diferença é que a prisão de Golunov mexeu com os brios de uma elite que é usualmente favorável ao Kremlin de Vladimir Putin, mas cuja formação intelectualizada e influência entre jovens profissionais liberais tende a fazê-la apoiar causas libertárias.

A reação inicial do Kremlin foi previsível. O porta-voz Dmitri Peskov mostrou fotos do laboratório de drogas atribuído a Golunov, mas num lugar que nenhum amigo do jornalista reconheceu como sua casa.

Pior para o governo, na própria sexta surgiram depoimentos em redes sociais de jornalistas ligados ao regime defendendo Golunov. Mesmo a rede de TV RT, usual canal de propaganda putinista, questionou a prisão do jornalista.

A Justiça mandou então o repórter para casa, em prisão domiciliar, o que não atenuou os ânimos. Jornais de negócios e finanças russos boicotaram a cobertura do Fórum Econômico de São Petersburgo, evento preferido de Putin, que neste ano recebeu o colega chinês Xi Jinping.

A reação maior ocorreu na segunda (10), quando os três principais diários russos, Kommersant, Vedomosti e RBK, publicaram primeiras páginas idênticas com a frase “Eu sou/Nós somos Ivan Golunov”.
“Isso nunca aconteceu na história russa recente. Putin foi obrigado a mudar de tática”, disse por email o jornalista Nikolai Sokolov.

Com efeito, o porta-voz Peskov mudou o tom nesta terça (11) cedo, dizendo em seu briefing diário que “talvez houvesse erros” na condução do caso. À tarde, o fim do processo contra o jornalista foi anunciado pelo ministro do Interior, Vladimir Kolokostsev.

Os dois policiais que armaram o flagrante contra Golunov, disse Kolokostsev à agência russa Tass, foram suspensos e tiveram recomendação de demissão feita a Putin. O site Meduza comemorou a liberdade do repórter, dizendo que “algo incrível aconteceu”.

Golunov foi a uma delegacia retirar um bracelete eletrônico e, ao sair, foi aplaudido pelos jornalistas. "Eu vou continuar meu trabalho porque preciso justificar a confiança colocada em mim", disse, chorando, segundo agências de notícias. Ele disse esperar que seu caso se torne um exemplo para evitar novas armações contra jornalistas pela polícia do país.

Como não havia se manifestado diretamente, Putin ainda pode colher benefícios pela rápida e inaudita mudança de humor de seu governo. Recentemente, ele vinha orientando um maior rigor contra abusos cometidos por agentes de segurança, visando justamente melhorar sua imagem junto à classe média urbana de grandes centros.

O presidente está no ponto mais baixo de sua popularidade em anos. Ainda é alta, na casa dos 60%, mas longe dos 90% que amealhou após a anexação da Crimeia em 2014. Há uma conjunção de razões para a perda da confiança nele: a contínua crise econômica, a ossificação do sistema político e, desde o ano passado, uma impopular reforma da Previdência que elevou a idade mínima de aposentadoria.

Jornalistas como Dagaeva e Sokolov acreditam que o caso Golunov pode marcar uma virada na difícil vida da classe na Rússia de Putin. As redes de TV principais são estatais ou controladas por magnatas próximos do Kremlin, e a imprensa ainda independente se concentra em jornais e sites, usualmente sob a pressão de ameaças de processos —ou coisa pior.

Assassinatos de repórteres que incomodam estruturas de poder são notórios no país, como o caso de Anna Politkovskaia, que investigava corrupção em 2006. Segundo o Comitê para Proteção de Jornalistas, 28 profissionais foram assassinados na Rússia desde 2000 —em comparação, foram 34 no Brasil.

Não compartilha avaliação otimista o colunista Leonid Berchidski, em artigo online no jornal The Moscow Times. “É uma vitória para os propagandistas suaves sobre a elite dos serviços de segurança, que vêm dificultando a ideia de vender a Rússia como um país normal no exterior. Mas não vamos nos mover nem um pouco rumo à normalidade”, disse.

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