Descrição de chapéu The New York Times

Ambições de Erdogan vão além da Síria: ele quer arma nuclear

Presidente da Turquia dá sinais de que pode seguir caminho trilhado pelo Irã

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David E. Sanger William J. Broad
Washington | The New York Times

O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, quer mais do que apenas o controle de uma faixa larga da Síria ao longo da fronteira com seu país. Ele diz que quer a bomba atômica.

Nas semanas antes de enviar suas forças à Síria para evacuar áreas sob controle curdo, Erdogan não escondeu sua ambição maior.

“Alguns países têm mísseis com ogivas nucleares”, ele disse em uma reunião de seu partido governista em setembro. Mas o Ocidente “insiste que não podemos tê-los. Isso é algo que eu não aceito”.

O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, durante evento em Kayseri, na Turquia
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, durante evento em Kayseri, na Turquia - Mustafa Kamaci - 19.out.19/Presidência da Turquia/Reuters

Com a Turquia agora em confronto aberto com seus aliados da Otan, tendo apostado que poderia lançar uma incursão militar na Síria sem sofrer retaliações e ganho a aposta, a ameaça do presidente adquire novo significado.

Se os Estados Unidos não puderam impedir Erdogan de expulsar os curdos, aliados americanos, como podem impedi-lo de construir uma arma nuclear ou de seguir os passos do Irã, dotando-se da tecnologia para isso?

Não foi a primeira vez que Erdogan falou da ideia de libertar-se das restrições impostas aos países signatários do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, e ninguém tem certeza de suas intenções reais.

Como o presidente Donald Trump descobriu nas últimas duas semanas, o autocrata turco é mestre na arte de deixar seus aliados e adversários confusos quanto a seus propósitos reais.

“Há anos os turcos vêm dizendo que farão o que o Irã fizer”, comentou John J. Hamre, um ex-vice-secretário da Defesa e atual diretor do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington. “Mas agora é diferente. Erdogan acaba de facilitar a retirada dos EUA da região.”

“Talvez ele queira mostrar que, como os iranianos, está a pouca distância do gol –que pode conseguir uma arma nuclear a qualquer momento”, disse Hamre.

Se for esse o caso, Erdogan está bem encaminhado –com um programa nuclear mais adiantado que o da Arábia Saudita, mas ainda muito atrás do que o Irã já alcançou.

Contudo, especialistas dizem que é duvidoso que ele pudesse montar uma arma em segredo. E qualquer gesto público nesse sentido desencadearia uma nova crise: seu país se tornaria o primeiro membro da Otan a romper com o tratado e armar-se independentemente com a arma máxima.

A Turquia já possui os ingredientes necessários para um programa de bomba nuclear: depósitos de urânio e reatores de pesquisas –sem falar em vínculos misteriosos com o mais famoso negociante do mercado negro nuclear, o paquistanês Abdul Qadeer Khan.

Além disso, com a ajuda da Rússia, está construindo sua primeira grande usina elétrica nuclear. Isso pode gerar receios porque Erdogan não informou que fim dará aos dejetos nucleares da usina, que podem fornecer o combustível para uma arma. O reator iraniano de Busheht também foi construído pela Rússia.

Especialistas disseram que a Turquia levará vários anos para dotar-se de uma arma, a não ser que Erdogan compre uma. E o risco para ele seria considerável.

“Com seu discurso nuclear, Erdogan está tentando agradar a um público interno antiamericano, mas é altamente improvável que ele procure obter armas nucleares”, opinou Jessica C. Varnum, especialista na Turquia no Centro James Martin de Estudos de Não-Proliferação, em Monterey, Califórnia.

“Se o fizesse, haveria custos enormes para o país em termos econômicos e de reputação, custos que atingiriam o bolso dos eleitores de Erdogan.” “Me parece que isso seria ir longe demais, para ele”, concluiu.

Há ainda outro fator em jogo nessa mistura atômica ambígua: a presença de cerca de 50 armas nucleares americanas estacionadas em solo turco. Os EUA nunca haviam reconhecido abertamente a existência delas até a quarta-feira (16), quando Trump fez exatamente isso.

Perguntado sobre a segurança dessas armas, que estão guardadas em um bunker sob controle americano na base aérea de Incirlik, Trump respondeu: “Estamos confiantes. E temos uma ótima base aérea ali, uma base aérea muito poderosa.”

Mas nem todos estão igualmente confiantes –porque a base aérea pertence ao governo turco. Se as relações com a Turquia deteriorarem, o acesso dos EUA à base não será garantido.

Como o programa nuclear iraniano, o programa turco é descrito como um esforço para desenvolver energia nuclear para fins civis.

A Rússia fechou um acordo para construir quatro reatores nucleares na Turquia, mas o esforço está seriamente atrasado. Programado originalmente para entrar em operação neste ano, o primeiro reator agora está previsto para ser inaugurado apenas no final de 2023.

A grande incógnita é o que será feito do combustível gasto. Especialistas nucleares concordam que a parte mais difícil do processo de construir uma bomba não é a criação do projeto, mas a obtenção do combustível.

Um programa de energia nuclear para fins civis com frequência é um ardil para ocultar a produção desse combustível e a formação de um arsenal nuclear clandestino.

A Turquia possui reservas de urânio, a matéria-prima imprescindível, e ao longo das décadas vem demonstrando grande interesse em adquirir o know-how complexo necessário para purificar urânio e convertê-lo em plutônio, os dois principais combustíveis de bombas atômicas.

Um relatório de 2012 do think tank Carnegie Endowment for International Peace, “A Turquia e a Bomba”, destacou que Ancara “deixou suas opções nucleares abertas”.

Hans Rühle, que entre 1982 e 1988 foi diretor de planejamento do Ministério da Defesa alemão, foi além. Em estudo de 2015 ele disse que “hoje a comunidade de inteligência ocidental concorda que a Turquia está trabalhando para criar sistemas de armas nucleares e os meios para projetá-las”.

As habilidades da Turquia com urânio ganharam destaque na década de 2000, quando investigadores internacionais descobriram que o país era um centro industrial clandestino do mercado nuclear negro de Khan, construtor do arsenal paquistanês.

O cientista renegado, arquiteto da maior rede de proliferação nuclear ilícita da história, vendeu equipamentos e projetos cruciais ao Irã, Líbia e Coreia do Norte.

Não se sabe até hoje se a rede de Khan teve um quarto cliente. Rühle, o ex-funcionário de defesa alemão, disse que fontes de inteligência acreditam que a Turquia talvez possua “um número considerável de centrífugas de origem desconhecida”.

Para ele, a ideia de que Ancara possa ser o quarto cliente “não parece improvável”. Mas não há evidência pública da existência dessas instalações.

O que está claro é que a Turquia encontrou um parceiro para o desenvolvimento de seu programa nuclear: o presidente russo Vladimir Putin.

Em abril de 2018 Putin viajou à Turquia para assinalar o início oficial da construção de uma usina nuclear de US$ 20 bilhões na costa mediterrânea turca.

A motivação da Rússia é em parte financeira. A construção de usinas nucleares é um dos produtos de exportação mais lucrativos do país.

Mas há outra finalidade também: como a exportação de um sistema de mísseis antiaéreos S-400 para Ancara –novamente passando por cima das objeções dos EUA—, a construção da usina coloca um país membro da Otan em parte no campo da Rússia, dependente de Moscou para sua tecnologia.

Tradução de Clara Allain 

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