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The Washington Post

Em disputa sem fim entre Trump e democratas, voto do impeachment é só mais um momento

Presidente ataca opositores com exageros, distorções e falsidades, em ritmo acelerado

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Dan Balz
The Washington Post

O impeachment de um presidente é um momento raro na história de um país; logo, a votação da quarta-feira (18) na Câmara inscreveu o presidente Donald Trump nos anais da nação da maneira mais desonrosa possível. Seja qual for a resolução final no Senado, a mácula que a ação adotada pela Câmara deixou sobre a biografia e o legado de Trump agora faz parte do histórico permanente desse presidente.

Mas as deliberações da quarta-feira na Câmara não representaram nada de muito fora do comum nos anais da Presidência de Trump. Inequivocamente dividida por linhas partidárias, com apenas uma discordância minúscula entre os democratas e nenhuma entre os republicanos, a Câmara dos Deputados do povo americano virou uma miniatura do próprio país, um povo dividido em torno da conduta de um presidente que desafiou todas as expectativas e infringiu todas as normas políticas –e que se prepara para continuar nesse caminho.

O presidente Donald Trump, durante comício em Battle Creek, Michigan - Scott Olson - 18.dez.2019/AFP

A palavra “história” pode ser usada com frequência excessiva para tratar de questões do momento, empregada casualmente e muitas vezes de modo injustificado. Mas isso não pode ser dito quando falamos em impeachment, um dispositivo incluído na Constituição americana pelos fundadores do país como o recurso máximo a ser usado pelo Legislativo para controlar o poder de um presidente.

Trump tornou-se apenas o quarto presidente dos EUA a ser submetido a artigos de impeachment e o terceiro para o qual a Câmara aprovou esses artigos. É um clube do qual presidente algum quer fazer parte.

Trump vem mantendo uma atitude de desafio ao longo de todo o processo, e possivelmente por razões que transcendem sua afirmativa de que ele não cometeu nenhum erro quando pressionou a Ucrânia a investigar um potencial rival político seu em 2020.

A carta irada de Trump à presidente da Câmara, Nancy Pelosi, divulgada um dia antes da votação na Câmara, parece ter refletido o entendimento dele em relação ao que estava prestes a acontecer. Como sempre é o caso com este presidente, as seis páginas de discurso enraivecido destacaram sua determinação de ter suas palavras e seus sentimentos refletidos claramente no registro histórico.

Mas, como é o caso de muitas outras coisas que emanam do presidente em seus tuítes, discursos e outras aparições públicas, esse discurso escrito está repleto de exageros, distorções e falsidades puras e simples. E é assim que o extraordinário tornou-se ordinário, se bem que nem por isso seja um problema menos importante de sua Presidência. Por mais que Trump tenha se desviado da verdade, ele tem demonstrado a capacidade de contar a história do modo que quer que as pessoas a ouçam, especialmente as pessoas de sua base.

A quarta-feira nos trouxe a tela dividida entre a história e o espetáculo. Na Câmara, enquanto os artigos de impeachment foram lidos, debatidos e votados, os deputados democratas foram instruídos a evitar manifestar prazer na desgraça de Trump ou sinais de estarem festejando o voto a favor do impeachment.

Ao mesmo tempo, num comício de campanha de Trump no Michigan na noite de quarta-feira, os partidários do presidente manifestavam abertamente seu apoio a Trump e desprezo pelo que os democratas fizeram. Não houve remorso algum à vista.

Quase exatamente 21 anos atrás uma Câmara sob controle republicano aprovou artigos de impeachment contra o presidente Bill Clinton por ele ter mentido sobre um caso extraconjugal com uma estagiária. Aquele dia foi extraordinário à sua maneira devido a tudo que estava acontecendo no Capitólio.

Clinton havia lançado ataques contra o Iraque dias antes e estava sendo condenado pelos republicanos, que o acusaram de realizar manobras para desviar a atenção pública. Mas Newt Gingrich, presidente da Câmara que estava no final de seu mandato, defendeu Clinton no plenário.

No momento que foi possivelmente o mais dramático do dia, o sucessor designado de Gingrich, Bob Livingston, anunciou que não se candidataria ao cargo devido às suas próprias indiscrições conjugais. A turbulência reinou enquanto a história era escrita.

A cobertura daquele dia destacou todos esses fatos, mas foram o impeachment e as forças que levaram o país àquela decisão que estiveram ao centro dos quilômetros de páginas de jornal ocupados pelas reportagens. Um tema constante analisado foi a política dividida da época, o rancor e a polarização aguda que tomaram conta de Washington e a sequência de acontecimentos que haviam conduzido o país para aquele momento sombrio.

Depois da votação nesse dia, Clinton se reuniu com outros democratas no gramado da Casa Branca, condenando a política da destruição pessoal, ao mesmo tempo em que seus acusadores falaram de como ele pisoteara a honra e a dignidade do Gabinete Oval.

As histórias daquele dia formam um eco do que está sendo dito e escrito sobre o momento atual, mas poucos hoje enxergam o período de duas décadas atrás como sendo equivalente ao momento pelo qual o país está passando hoje. As condições existentes então se agravaram. Muitos fatores contribuem para isso: a velocidade com que as informações são transmitidas; os ciclos de notícias intermináveis; a mídia fraturada e mais polarizada; a toxicidade da mídia social.

Uma das diferenças mais importantes entre então e agora é o modo em que Trump conduz a Presidência, o grau em que tudo se tornou pessoal e nenhuma queixa passa despercebida ou deixa de ser atacada. E há a ruptura na aceitação dos fatos e da verdade, amplificada pela estratégia do presidente de conservar sua base leal e também furiosa com seus detratores. É ela, tanto quanto qualquer outro fator, que criou um ambiente contaminado no qual conduzir debates ou governar.

A América estava polarizada duas décadas atrás, sem dúvida, mas está mais polarizada hoje. O abismo entre os dois lados cresceu e as linhas de resistência se endureceram. Uma medida pequena, mas não insignificante disso é a diferença de abordagem entre os líderes do Senado de então e de hoje no momento em que começam os preparativos para o julgamento do impeachment.

Duas décadas atrás o então líder da maioria republicana Trent Lott, do Mississippi, e o então líder da minoria democrata Tom Daschle, do Dakota do Sul, definiram de modo cooperativo os termos em que ocorreria o julgamento no Senado. Hoje o líder da maioria republicana, Mitch McConnell, do Kentucky, e o líder da minoria democrata Charles Schumer, de Nova York, travam uma guerra de palavras sem sinal de trégua à vista.

Outra medida das diferenças entre então e hoje é a percepção que o público tem das acusações feitas aos presidentes. Bill Clinton foi condenado mesmo por membros de seu próprio partido por atos pessoais repreensíveis, mas, por uma margem de 2 a 1, o público não considerou a conduta privada do presidente como sendo digna de impeachment.

Os atos que levaram ao impeachment de Trump envolvem sua atuação como presidente dos Estados Unidos ao pedir ajuda de outro país para seus objetivos políticos próprios. O apoio público ao impeachment, embora esteja estreitamente dividido, é muito maior do que foi no caso de Clinton. Um republicano após outro foi ao plenário na quarta-feira para afirmar que as acusações feitas contra Trump são sem mérito e politicamente motivadas. Falando reservadamente, alguns republicanos se mostram perturbados pelo que Trump fez, embora seus líderes eleitos tenham relutado em dizê-lo publicamente.

Apesar de toda a gravidade do momento, refletida no tom geral de boa parte da discussão da quarta-feira no plenário da Câmara (houve alguns deputados que optaram por distorções e um tom bombástico), é provável que o processo do impeachment torne-se mais uma ponto de parada na luta travada há quatro anos entre aqueles que se opõem a este presidente e receiam que sua conduta tenha efeitos lesivos de longo prazo sobre o país e aqueles que o apoiam e o enxergam como uma pessoa disposta a travar combate diariamente contra forças e instituições que eles enxergam como sendo destrutivos de seu modo de vida.

Em vista do resultado quase certo no Senado, onde a expectativa é que Trump seja absolvido pelo voto partidário republicano, as questões que desembocaram na votação do impeachment na quarta-feira vão fazer parte do conflito político em curso no momento em que o país se encaminha para a eleição presidencial de 2020.

Aqueles para quem a política é seu ganha-pão divergem sobre até que ponto o impeachment será um fator levado em conta quando os eleitores forem às urnas em novembro. Mas, no momento em que o impeachment deste presidente passa para sua próxima fase, é provável que aquilo que esse processo causou vai estar pelo menos presente na cabeça de muitos eleitores.

O caráter de Trump é uma das questões, e, agora que sua conduta atraiu a repreensão mais forte que a Constituição permite exceto por seu afastamento da Presidência, a questão do caráter do presidente pode ganhar contornos maiores na cabeça de alguns eleitores. Outra questão é a força das instituições agora sujeitas ao desgaste provocado por um presidente que já atacou várias agências do Executivo. A exaustão sentida por muitos americanos devido à turbulência incessante da Presidência de Trump é outra questão.

As consequências políticas do impeachment são incertas, tanto para os democratas de Nancy Pelosi quanto para o presidente. As respostas só aparecerão em novembro de 2020. Mas, como disse na quarta-feira William Galston, do Brookings Institution, “não haverá calma após a tempestade”.


Contagem dos votos

Eram necessários 216 votos contra Trump em qualquer um dos artigos para aprovar o impeachment

Abuso de poder:
O presidente é acusado de abusar de seu poder ao pressionar a Ucrânia a investigar Joe Biden, seu principal adversário na eleição de 2020

230
deputados votaram a favor

197
deputados votaram contra, incluindo dois democratas

Obstrução do Congresso:
O presidente é acusado de interferir nos poderes de investigação do Congresso enquanto este conduzia o inquérito sobre a denúncia de abuso de poder

229
deputados votaram a favor

198
deputados votaram contra, incluindo três democratas

Três deputados não votaram.
A pré-candidata democrata Tulsi Gabbard votou ‘presente’ —nem a favor, nem contra.

Tradução de Clara Allain

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