Descrição de chapéu The New York Times

Técnico de remo brasileiro levanta questão sobre visto para habilidades especiais nos EUA

Hicu Motta transformou meninas pobres em remadoras de primeiro nível, mas teve green card rejeitado

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Los Angeles | The New York Times

Nos últimos três anos o treinador de remo Henrique Motta, conhecido como Hicu, vem criando histórias improváveis de sucesso em um esporte por muito tempo associado à classe alta.

Ele levou sua equipe de meninas de famílias de classe trabalhadora para os campeonatos nacionais e encaminhou várias delas a faculdades da Primeira Divisão, com bolsas de estudo esportivas.

“Sou latina, baixinha e nunca tinha participado de um time esportivo”, disse Isabella Soto, 17, filha de uma babá e um maquinista e que agora tem a esperança de remar numa faculdade de elite a partir do outono deste ano.

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O treinador Henrique "Hicu" Motta, em marina de Los Angeles - Bethany Mollenkof/The New York Times

Aceita na equipe RowLA apesar de ter apenas 1,57 metro de altura “num dia bom”, Isabella é americana de primeira geração, filha de mexicanos indocumentados.

Kassie Kim é filha de imigrantes coreanos –caixa de supermercado e instalador de alarmes anti-incêndio.

Samadhi Dissanayake, cingalesa-americana criada por mãe solteira numa casa subsidiada pelo governo, toma dois ônibus para ir e vir dos treinos.

“Antes de vir para cá, eu odiava esportes”, comentou Samadhi, que também está pensando em remar na faculdade. “Hoje eu adoro o remo e a sensação de fazer parte de uma comunidade.”

Mas Motta, 39, brasileiro que está nos EUA com visto de trabalho, foi notificado que seu pedido para permanecer nos Estados Unidos foi negado.

As autoridades de imigração disseram que, para poder ficar no país, ele terá que comprovar que possui “habilidade extraordinária” de realizar um trabalho que de outro modo poderia ser feito por um americano.

Em um esporte dominado por atletas brancos e ricos, o RowLA, sob a liderança de Motta, faz questão de atrair pessoas que normalmente não teriam acesso ao esporte. Nem a constituição física nem a habilidade atlética das candidatas determina quem tem a chance de competir e dar certo.

"Hicu é capaz de pegar uma menina, independentemente de sua altura ou habilidade, e convertê-la em remadora séria. É um dom raro entre treinadores”, diz Liz Greenberger, analista aposentada de segurança internacional que fundou o time uma década atrás e em 2017 contratou Motta como segundo treinador.

“É a filosofia de Hicu que é perfeita para nosso programa.”

A filosofia de Motta é simples: “Procuro transformar em algo especial qualquer menina que queira experimentar o remo”, disse ele.

A questão é se isso equivale a uma “habilidade extraordinária”.

Nos três anos passados desde que recebeu um visto de trabalho, Motta criou um programa de remadoras dedicadas que competiram no U.S. Rowing Youth Nationals, o nível mais alto para as remadoras colegiais, e conquistou bolsas de estudo em faculdades.

Mas Motta não se limita a treinar as atletas no remo.

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Atletas de remo treinam na Marina Del Rey, em Los Angeles - Bethany Mollenkof/The New York Times

Nutricionista por formação, ele ensina suas atletas a seguir uma dieta balanceada. Nada de comida processada antes das provas. Aposte nas frutas para ganhar energia e na água de coco para se hidratar.

Motta incentiva suas remadoras a se dedicar aos estudos e pensar em um futuro cheio de possibilidades.

“A gente não enfoca apenas o desempenho no remo. Estamos desenvolvendo estudantes que são atletas”, disse Motta, falando no estacionamento 77 da Marina del Rey, em West Los Angeles, onde o time se reúne para treinar seis dias por semana, faça chuva ou sol.

O RowLA é um programa de remo pequeno, financiado por doações privadas, e não pode ser comparado a muitos dos times de elite espalhados pelo país, alguns dos quais existem há um século.

O time não possui uma garagem de barcos. Seus 17 sculls (um tipo de barco), máquinas de remo e outros equipamentos ficam no estacionamento, protegidos por lonas.

“O trabalho que Hicu realiza é extraordinário”, comentou Iva Obradovic, veterana treinadora de remo e antiga remadora competitiva.

“Ele está competindo contra times privados, ricos. Praticamente nenhum outro treinador se disporia a fazer isso. Ele não vai ganhar elogios ou glórias por isso.”

A composição das atletas do RowLA diz tudo sobre a filosofia de Motta como treinador, disse Obradovic. “Essas garotas não são remadoras típicas, mas elas não faltam aos treinos, elas têm disciplina e investem o esforço.”

Quando o RowLA patrocinou Motta para um visto temporário de trabalho, em 2017, seu pedido de visto, com mais de 250 páginas, documentou mais de duas décadas de um trabalho de sucesso como remador e treinador.

Havia cartas de autoridades seniores do remo brasileiro, endossos de treinadores de remo e atletas de vários países e uma lista detalhada de seus títulos e prêmios –mais de 20 títulos brasileiros em várias categorias.

O visto foi aprovado em uma semana. “Todo o mundo tinha dito que seria tão complicado. Fiquei emocionado”, recordou Motta.

Com o visto, sua mulher, Emanuelle “Manu” Abreu, remadora competitiva no Brasil, pôde vir viver com ele nos Estados Unidos, onde ela vem treinando e trabalhando como voluntária na RowLA.

Assim que assumiu a direção da RowLA, Motta começou a desenvolver e fortalecer o time. Ele criou um programa de desenvolvimento para meninas do ensino médio e ampliou o alcance do programa de remo seco da organização, passando de duas para oito escolas na área de Los Angeles, abrangendo mais de 4.000 estudantes a cada ano.

No início de 2019 a RowLA decidiu patrocinar Motta em seu pedido de obtenção do green card, ou residência legal permanente nos Estados Unidos.

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Equipe de Hifu pratica remo em Los Angeles - Bethany Mollenkof/The New York Times

Na solicitação, um documento de 300 páginas, Greenberger descreveu Motta como um “patrimônio de valor inestimável” do RowLA.

Rob Glidden, presidente da Associação de Remo Long Beach, atribuiu a criação de um programa “fora de série” de desenvolvimento de remadoras aos métodos de treinamento de Motta, sua assessoria nutricional e suas qualidades pessoais.

“A confiança que ele inspira nessas jovens é visível”, escreveu Glidden, dizendo que ela ajudou muitas das atletas a alcançar um grau de sucesso acadêmico e esportivo “que de outro modo não teria sido possível”.

Mas o governo reagiu pedindo mais evidências de que Motta é “extraordinário”. O advogado de Hicu, Richard Wilner, encaminhou mais 150 páginas de documentação, mas em agosto recebeu uma resposta negativa.

Em carta de cinco páginas, a Agência de Serviços de Cidadania e Imigração dos EUA, responsável por aprovar autorizações de residência, apresentou razões por que Motta não satisfaz os critérios de alguém que possui “habilidade extraordinária”.

A decisão da agência fez referência a um manual de treinamento criado por Motta para o RowLA, admitindo tratar-se de uma “contribuição original”, mas disse que Motta “não ofereceu provas objetivas de que essa inovação esteja sendo amplamente utilizada por outros que atuam nesse campo, além de seu empregador ou clientes”.

Motta tampouco comprovou que exerce “papel de liderança ou crítico para organizações ou estabelecimentos que possuam reputação notável”, disse a carta de rejeição.

O argumento que feriu mais: a carta disse que as evidências apresentadas não mostram que Motta tenha recebido “um prêmio ou troféu importante e internacionalmente reconhecido” para sua equipe.

Motta disse que, como atleta e treinador competitivo, é óbvio que ele quer ganhar. Mas talvez, segundo ele, as vitórias não devam ser contabilizadas apenas em medalhas.

“Em outros clubes, tudo se resume ao desempenho. Nosso objetivo aqui é colocar as garotas no caminho certo, aquele que leva à faculdade”, explicou. “O remo é a ferramenta para isso.”

Wilner disse que o governo está usando critérios equivocados. “Talvez devêssemos avaliar a habilidade extraordinária de Motta como treinador usando um critério adicional não contemplado pelos regulamentos”, ponderou.

“É o fato de ele estar ajudando cada uma dessas meninas a vencer na vida, a ser a primeira em suas famílias a chegar à faculdade, não apenas a ganhar medalhas.”

Um porta-voz do Serviço de Cidadania e Imigração disse que a agência não comenta casos individuais.

“Há um limiar muito alto de exigências que precisa ser atingido para se receber este visto”, disse.

Dos cerca de 1,1 milhão de green cards emitidos no ano fiscal de 2018, 39.500 pessoas os obtiveram na categoria da habilidade extraordinária, segundo o governo. Essa cifra inclui os cônjuges e filhos do candidato.

Wilner moveu um recurso contra a negativa de green card, e as custas legais estão se acumulando, chegando a mais de US$ 15 mil até agora.

A RowLA também apresentou um pedido de extensão por mais três anos do visto temporário original dado a Motta, que chegou ao fim na sexta-feira passada (14).

Em vez de conceder a renovação do visto temporário, no início deste mês as autoridades de imigração pediram que Motta apresente mais evidências de sua “habilidade extraordinária”.

Ele está autorizado a permanecer no país e continuar treinando até que seja tomada uma decisão final sobre qualquer dos dois pedidos.

Então é o que ele está fazendo.

Num domingo recente, Motta estava em pé numa lancha na marina, orientando suas remadoras em meio aos gritos de gaivotas.

“Remos paralelos!”, disse ele por um walkie-talkie. Em sintonia perfeita, as meninas mergulharam os remos na água e impeliram seus barcos para frente.

Tradução de Clara Allain

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