Prestes a assumir presidência da UE, Merkel faz de canto do cisne grande desfecho

Alemã cumpre quarto mandato como chanceler e anunciou aposentadoria para 2021

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Bruxelas

Angela subiu os 12 degraus do trampolim de três metros e olhou para baixo. Com medo, recuou, voltou à beirada, deu outro passo atrás. Lá embaixo, seus colegas riam, alguns começaram a gritar. Quando o sinal anunciou o final da aula, a menina tomou fôlego e saltou. Foi a única da classe a mergulhar de cabeça.

Aos dez anos de idade, Angela ainda não era Merkel, mas revelava traços da personalidade que a transformaram numa das líderes mais importantes do mundo, décadas depois. Pragmática, não age por impulso. Seu método de decisão inspirou o verbo “zu merkeln”, palavra alemã do ano em 2015; significado: “adotar o mais alto grau de passividade”.

Para Merkel, porém, hesitação é uma virtude e analisar todos os ângulos um sinal de força, segundo o cientista político Matthew Qvortrup, autor de uma das várias biografias da chanceler da Alemanha. Quando decide, mergulha de cabeça e pode ser surpreendente e implacável.

Foi agindo sem remorsos contra ex-mentores que tropeçaram que a ex-cientista tornou-se a mais jovem ministra alemã (aos 36 anos), a primeira mulher secretária-geral do CDU (União Democrática Cristã), aos 44, e presidente do partido, aos 45, e a primeira e mais jovem chefe do governo da Alemanha, aos 51.

No próximo 1º de julho, dias antes de fazer 66 anos, ela assume a presidência rotativa da União Europeia como fiadora de um projeto de reconstrução econômica baseado em subsídios e investimento, dando um cavalo-de-pau na política de austeridade que sempre defendeu.

Será uma nova etapa na trajetória da filha mais velha de um pastor luterano e uma professora de latim e inglês, que aprendeu a falar muito cedo, mas demorou a andar. Na Alemanha Oriental, onde cresceu, se destacou como melhor aluna e convenceu os pais a colocá-la nos Jovens Pioneiros, aos oito anos, porque só notas dez não bastavam para ganhar prêmios.

Kasi, como a chamavam as amigas, “era perfeccionista à beira da inconveniência, um pouco como a Lucy, do Snoopy, ou a Lisa Simpson”, compara Qvortrup. Apaixonada pela língua russa, levou o ouro nas olimpíadas do idioma aos 16 anos.

Era uma adolescente bem comportada, mas fumava escondido, dizem colegas. Não namorava, gostava de festas, era boa em imitações e preferia os Beatles aos Rolling Stones. “Submarino Amarelo” foi o primeiro disco que comprou.

Destoava da classe por vestir jeans e usar tênis, não para seguir a moda, mas porque sua avó mandava presentes ocidentais para complementar a renda baixa da família. Dela também recebia postais de pintores impressionistas, com os quais forrava as paredes. Paul Cézanne era seu preferido.

Merkel pensou em cursar medicina, mas optou por física, uma ciência fora do alcance da doutrinação ideológica. Não que se desinteressasse da política. O assunto era tema em jantares de família e ela gostava de ouvir no rádio notícias das eleições na outra metade da Alemanha.

Na faculdade, foi secretária de cultura da Juventude Alemã Livre (FGJ), cargo que, segundo críticos, fazia propaganda do regime. Merkel sempre rebateu que cuidava de organizar eventos. Nunca se aproximou do Partido da Unidade Socialista, mas a projeção nos estudos e a atuação na FDJ atraíram a Stasi (agência de inteligência). Sondada para virar informante, livrou-se do convite dizendo ser incapaz de guardar segredos.

Na noite em que caiu o Muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, a então cientista jantava, depois de ter ido à sauna. Merkel não participava dos protestos, mas a política já ultrapassara o estágio da reflexão e a atraía como atividade.

Naquele mesmo ano, ela se voluntariou para ajudar o movimento Despertar Democrático (DA), que virou partido. A pequena agremiação chegou ao poder coligada à União Social Alemã (DSU) e à União Democrática Cristã (CDU) em 1990, na primeira e única eleição livre da Alemanha Oriental.

A futura chanceler foi apontada vice-porta-voz do governo da CDU, à qual se filiou logo depois. Em dezembro, na primeira eleição pós-unificação da Alemanha, conquistou uma cadeira no Bundestag (equivalente à Câmara dos Deputados).

Foi com base em cálculo, determinação, trabalho duro e capacidade de organização que Merkel abriu caminho na política, dizem seus biógrafos. Não tinha carisma nem simpatia exuberante, nunca se destacou como oradora nem projetava autoconfiança. Mais de uma vez, chorou em público ao ser criticada ou confrontada com erros.

Até por isso, servia perfeitamente aos propósitos dos homens mais velhos que mandavam na política: mulher e jovem, vinha da ex-Alemanha Oriental e estava longe de representar uma ameaça. Era a "Kohls Mädchen" (garota de Kohl), apelido que ganhou ao ser nomeada ministra em 1991 pelo então chanceler, Helmut Kohl.

Oito anos depois, mostrou que se emancipara. A CDU havia sido derrotada em 1998 por Gerhard Schröder, do Partido Social Democrata (SPD), e em 1999 Kohl foi acusado de fraude em financiamento de campanha.

Secretária-geral do partido, Merkel publicou carta aberta convocando o ex-padrinho a deixar o posto de líder honorário e chamando a CDU para uma refundação, “como um adolescente que precisa se liberar e seguir seu próprio caminho”.

No ano seguinte, a ex-garota de Kohl foi a primeira mulher a se eleger presidente da CDU e, em novembro de 2005, virou chanceler da Alemanha. Seu mandato foi renovado outras três vezes, com diferentes coligações e em variadas composições de forças e fraquezas.

Em 2009, em coalizão com o Partido Liberal Democrático (FDP), ela se apresentou como a líder que devolveu à Alemanha seu papel de maior economia da Europa.

Em 2013, em coalizão com o SPD, era a negociadora que impôs limites de déficit e endividamento a governos europeus e impediu que uma saída da Grécia implodisse a UE.

Quando a Rússia anexou à força a Crimeia, em 2014, Merkel liderou as negociações e pressões para evitar um avanço mais amplo dos russos sobre a Ucrânia, pelo que foi chamada de “líder do mundo livre”.

O momento de brilho foi encoberto logo depois pela mais grave crise de refugiados da Europa desde a Segunda Guerra Mundial, na qual milhões de pessoas fugiram de conflitos na Síria, no Afeganistão e em outros países da Ásia e da África.

A Hungria levantou cercas e, numa reunião de líderes, o premiê Viktor Orbán vangloriou-se: “É questão de dias para que a Alemanha faça o mesmo. Aí será o tipo de Europa de que eu gosto”. Merkel olhou para baixo, fez uma pausa e respondeu lentamente: “Vivi muito tempo atrás de cercas. Não é algo que eu queira fazer de novo”, relata Qvortrup.

A entrada de mais de 1 milhão de imigrantes na Alemanha pôs lenha na fogueira acesa pelo partido de direita radical AfD (Alternativa pela Alemanha), que liderou protestos xenófobos e chegou ao segundo lugar nas eleições regionais de 2016 no estado de Merkel.

A chanceler gastou capital político na crise, mas a CDU (em coligação com a CSU) venceu as eleições de 2017. O governo só foi garantido, porém, após o SPD ser convencido a formar nova grande coalizão, em 2018. Ela abriu mão da liderança do partido e anunciou que se aposentaria ao final do mandato, em 2021.

Há menos de um ano, a Merkel que nesta pandemia de coronavírus retomou o título de líder mais influente da Europa foi filmada tremendo incontroladamente em três eventos públicos. Médicos atribuíram o desequilíbrio a desidratação e estresse, mas analistas e opositores rapidamente usaram como metáfora de seu momento político.

A chanceler respondeu apenas que tudo estava sob controle, evitando mais uma vez comentar sua vida pessoal. Das raras vezes em que tocou no assunto, sabe-se que aos 24 anos casou-se com o colega de física Ulrich Merkel, na igreja, “porque é o que todos faziam”. Vestiu azul, sua cor predileta.

Não se sabe o porquê do segundo casamento, com Joachim Sauer (hoje considerado um dos maiores químicos teóricos do mundo), após mais de 15 anos de relacionamento.

O novo estado civil —que, na especulação de biógrafos, facilitaria sua carreira na democracia cristã— foi comunicado por anúncio em um jornal no começo do ano 2000: “Casamo-nos. Angela Merkel e Joachim Sauer”. Nem família nem amigos foram informados pessoalmente.

Com algum enfado, Merkel confirmou a jornalistas que pinta os cabelos e negou ter decidido não ter filhos: “Aos 35 anos entrei para a política, e agora já está fora de questão”.

Diz fazer boas sopas de batatas, bracholas e salada de beterrabas, e seu marido, filho de um confeiteiro, assa tortas nas férias.

Tem dois irmãos, o professor universitário de física Marcus, nascido em 1957, e a terapeuta ocupacional Irene, de 1964, e dois enteados.

Merkel é criticada até hoje por ter enorme sede de poder e dever seu sucesso a erros dos outros, diz o analista político Dirk Muller, também biógrafo dela.

De fato, a chanceler alemã aproveitou várias dessas falhas: a falência do regime socialista que levou à queda do muro, a saída do chefe da DA por antiga ligação com a Stasi, o envolvimento das velhas estrelas da CDU em fraudes e a sofreguidão por poder de seu principal opositor, Gerhard Schröder.

“Mas é preciso talento para chegar à chancelaria e permanecer nela por um período tão longo. A única coisa que ela ainda precisa provar é que, ao contrário de todos os seus predecessores, consegue ter uma saída mais elegante”, diz o biógrafo.


AS SETE VIDAS DE ANGELA MERKEL

Criança prodígio

1954 - Angela Dorothea Kasner nasce em 17 de julho, em Hamburgo, na então Alemanha Ocidental, e semanas depois vai para a casa da família, em Brandemburgo (Alemanha Oriental)

1962 - Sempre entre os melhores alunos da escola, entra para o grupo Jovens Pioneiros

1968 - Destaca-se em matemática, vence olimpíadas de russo; ingressa na Juventude Alemã Livre e assume a área de cultura

Neutralidade científica

1973 - Começa o cursar física na Universidade Karl Marx (atual Universidade de Leipzig)

1977 - Casa-se com o colega Ulrich Merkel

1978 - Recusa convite do Ministério da Segurança do Estado (Stasi) para se tornar informante. O casal se forma e começa a trabalhar na Academia de Ciências, em Berlim Oriental

1982 - Divorcia-se, mas mantém o sobrenome Merkel

Namoro com a política

1983 - Começa relacionamento com o químico Joachim Sauer; cresce o interesse pela política

1986 - Recebe o doutorado em química quântica

1989 - Ingressa no movimento Despertar Democrático (DA), que vira partido, do qual ela é porta-voz

1990 - A coalizão entre União Social Alemã (DSU), União Democrática Cristã (CDU) e DA vence a primeira e única eleição livre da Alemanha Oriental. Merkel é vice-porta-voz do governo de Lothar de Maizière e entra na CDU. Em dezembro, na primeira eleição pós-unificação, ganha uma vaga no Bundestag (equivalente à Câmara dos Deputados)

Ascensão meteórica

1991 - Nomeada ministra da Mulher e da Juventude pelo chanceler Helmut Kohl, começa a ser chamada de "Kohls Mädchen" (garota de Kohl)

1994 - Torna-se ministra do Meio Ambiente e preside a primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Clima, em Berlim

1998 - CDU perde o governo para Gerhard Schröder, do Partido Social Democrata (SPD). Merkel é eleita secretária-geral da CDU e oficializa casamento com Sauer

1999 - Kohl e CDU são envolvidos em escândalo de financiamento de campanha; Merkel publica carta aberta convocou o partido a se refundar


Consolidação

2000 - É eleita a primeira presidente mulher da CDU

2002 - Torna-se líder da oposição

2005 - Em coalizão da CDU-CSU com o SPD, torna-se a primeira mulher, a primeira alemã oriental e a pessoa mais jovem a ocupar o cargo de chanceler da Alemanha, equivalente ao de primeiro-ministro

2009 - Seu mandato é renovado e a CDU forma coalizão com o Partido Liberal Democrático (FDP). Defende austeridade como prioritária após crise financeira de 2008

2013 - Aprova pacto que obriga governos da UE a cumprir limites de déficit e endividamento; CDU vence eleições e Merkel obtém terceiro mandado como chanceler, em coalizão com SPD

Turbulência e crise

2015 - Defende fronteiras abertas da Alemanha na crise dos refugiados; mais de 1 milhão de imigrantes entraram no país

2016 - Partido de direita radical AfD lidera protestos contra imigração e chega ao segundo lugar nas eleições regionais no estado de Merkel. CDU entra em crise

2017 - Obtém seu quarto mandato como chanceler, em coligação com a CSU

2018 - SPD entra na coalizão, garantindo o quarto mandato; CDU continua em crise e Merkel anuncia que não procuraria reeleição como líder do partido e deixaria o cargo de chanceler ao final do mandato, em 2021


Volta por cima

2020 - É apontada como principal liderança europeia e uma das principais líderes do mundo na reação à pandemia de coronavírus; abandona sua defesa de austeridade e patrocina projeto “solidário” de reconstrução econômica pós-crise. O AfD tem forte queda de popularidade

Em julho, assume a presidência rotativa do Conselho da União Europeia

ENTENDA O NOVO CARGO

O que é o Conselho da União Europeia

Órgão em que os ministros dos 27 países da UE se reúnem para adotar legislação e coordenar políticas.

Não confunda com Conselho Europeu

Do qual Merkel também faz parte, por ser chanceler alemã.

O Conselho Europeu é formado pelos chefes de governo ou de Estado dos Estados-membros, o presidente do Conselho Europeu e o presidente da Comissão Europeia, e define prioridades políticas gerais da UE. Seu atual presidente é o belga Charles Michel

Quais as funções do Conselho da UE

  • Negociar e adotar leis do bloco
  • Coordenar políticas dos países membros —monitora contas públicas, estabelece prioridades para o mercado de trabalho e coordena coalborações em educação, cultura e esportes
  • Desenvolver políticas de defesa e relações internacionais da UE
  • Concluir acordos internacionais
  • Adotar o orçamento anual, em conjunto com o Parlamento Europeu

Qual a função da presidência do Conselho da UE

  • Coordenar os processos legislativos e de cooperação entre os membros
  • Presidir reuniões de conselhos, comitês e grupos de trabalho
  • Representar o Conselho da UE nas relações com a Comissão e o Parlamento Europeu
  • Apoiar os trabalhos do presidente do Conselho Europeu e do alto representante para Relações Internacionais e Defesa

Quais as prioridades de Merkel para a Presidência da UE

  • Recuperação "solidária" da crise do coronavírus
  • Avanço na regulação ambiental
  • Conclusão do brexit
  • Redução da dependência dos EUA e da China em áreas como digitalização, cadeias de suprimento industriais e de saúde
  • Reforço da política externa e defesa

O que pode afetar o Brasil

Acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia tramitará sob a presidência de Merkel. Indústria alemã é a principal beneficiada com o acordo, mas há oposição crescente de ambientalistas e resistência de setores agrícolas

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