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Documentário acompanha família americana à sombra da guerra por dez anos

'Pai, Filho, Pátria' não é impecável, mas conta uma história impressionante sobre o norte-americano médio

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São Paulo

Pai, Filho, Pátria

  • Quando 2020
  • Onde Netflix
  • Preço 1h4-0min
  • Direção Catrin Einhorn e Leslye Davis

Em um momento basilar de “Pai, Filho, Pátria”, a família Eisch vai ao cinema assistir a “Sniper Americano”.

No filme de Clint Eastwood, de 2014, é dramatizada a vida de um dos mais temidos franco-atiradores americanos deste século, Chris Kyle.

Ele nunca se adapta plenamente à vida civil, após voltar da guerra do Iraque, e acaba morto de forma banal por um ex-militar perturbado.

Brian Eisch se despede de seus filhos Joey e Isaac ao voltar para o Afeganistão, onde serve na guerra
Brian Eisch se despede de seus filhos Joey e Isaac ao voltar para o Afeganistão, onde serve na guerra - Marcus Yam/The New York Times

Isaac, o filho mais velho dos Eisch, é enquadrado em toda sua angústia. Seu pai, Brian, poderia ser o Kyle do cinema.

Só que ele é real, lá ao lado dizendo que já tinha usado esse ou aquele equipamento, para deleite do irmão mais novo de Isaac, Joey.

A metalinguagem é uma das surpresas do documentário, cujo título original ("Pai Soldado Filho") talvez faça mais justiça ao espírito do trabalho, que está na Netflix.

Ele é uma mistura de “Boyhood: da Infância à Juventude” (Richard Linklater, 2014) e títulos como “Nascido em 4 de Julho” (Oliver Stone, 1989) e o próprio “Sniper Americano”.

Do primeiro, ele retira os temas da formação da masculinidade nos EUA e o formato, em que os personagens foram acompanhados por anos, envelhecendo de forma crível.

Dos segundos, o centro narrativo: é a história real de Brian, que traz mutilações físicas e psíquicas de seu tempo de guerra, a moldar seu entorno.

A diferença é que se trata de fatos, e não algo de baseado neles. Ao longo de uma década, duas repórteres do New York Times, Catrin Einhorn e Leslye Davis, filmaram o cotidiano da família Eisch.

Tudo começou com uma reportagem de Einhorn em 2010, acompanhando o impacto humano do aumento de tropas no Afeganistão, determinado pelo então presidente Barack Obama.

Ali se vê um enérgico Brian em licença, voltando para visitar os filhos por duas semanas no Wisconsin, sob aplausos no aeroporto.

Logo depois, ele retorna ao sul da Ásia, só para voltar aos EUA numa cadeira de rodas, com ferimentos horrendos nas pernas. Quatro anos depois, incapaz de lidar com as dores, o sargento tem uma delas amputada.

Essa é apenas uma das tragédias a impactar a vida de Brian, pai solteiro de Isaac (12 anos no começo do filme) e Joey (7 anos), que no processo se casa com a namorada Maria.

Elas são tão agudas que o espectador pergunta se na verdade não é tudo ficção.

A câmera de Einhorn e Davis garante tanta naturalidade que gera dúvidas sobre o quão autênticas são as situações.

Assumindo que são, é notável. Há um esforço adicional: não há uma narrativa em “off” ou tentativa forçada de direcionar o olhar da plateia.

Há dois níveis complementares em cena. No mais interno, a masculinidade tosca de Brian e como seus filhos lidam com esses valores.

A cena do pequeno Joey aos prantos porque é incapaz de repetir a performance juvenil do pai na luta greco-romana encontra paralelo nas melhores ficções sobre o tema.

A toxicidade do ambiente asfixia. A família deixou Wisconsin e foi parar num buraco “white trash” clássico e sob intensa neve, no interior do estado de Nova York.

Armas são onipresentes, e atirar em pássaros, uma das poucas diversões dos garotos.

Deprimido e irritadiço quase o tempo todo, Brian vai se afundando em frente à câmera. Refugia-se em videogames de atirador e guerra, algo tão trivial que seria considerado clichê numa ficção.

Em outra dimensão, há o vazio sobre o conceito do “por que lutamos”, central para o esforço americano na Segunda Guerra Mundial, o último conflito dito justo.

Comparações com clássicos como “O Franco-Atirador” (Michael Cimino, 1978) ou “Rambo” (Ted Kotcheff, 1982) são inevitáveis, mas aqui a coisa é para valer.

Joshua, cuja psicologia é a mais complexa em cena, vai de menino que idolatra o pai herói a adolescente que rejeita o Exército, só para acabar o filme alistado.

Em outra cena forte, ele admite candidamente não ter ideia sobre o que começou aquela guerra então com 18 anos de duração, que mutilara sua família e na qual poderia vir a ser jogado.

As Forças Armadas são, como tinham sido em duas gerações anteriores à de Brian, um empregador seguro.

Patriotismo impregna o ambiente, mas vazio de sentido. Alguém questiona Brian se valeu perder a perna e diz sem pestanejar que sim, mas é incapaz de formular uma justificativa articulada para isso.

Em outro momento, balbucia algo sobre “ser parte de algo maior”, sem convicção.

Sem generalizar, fica difícil ignorar Frederico, o Grande (1712-86). “Se meus soldados começassem a pensar, deixariam seus postos”, disse o rei prussiano, um dos maiores gênios militares da história.

Apesar dessa dimensão pessoal, que exprime a baixa extração social e intelectual da família Eisch e sua busca honesta por sustento, a cola invisível do enredo é a política.

Brian é um típico eleitor de Donald Trump, mas apenas uma rápida espiada em seu Facebook numa cena permite sugerir isso.

Mas as diretoras não caem na tentação de fazer um panfleto à la Oliver Stone, o que vai decepcionar quem gosta de cartilhas óbvias.

Essa virtude, contudo, leva a uma falta de coesão narrativa. O filme é curto (1h40min), mas dá a impressão de que poderia contar o mesmo com a metade do tempo de tela.

“Pai, Filho, Pátria” está longe de ser impecável na execução, mas é um documento rico da banalidade da vida e da morte do americano médio, tendo a interação dele com o Estado como sujeito oculto.

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