Prisão de jornalista gera protestos e temor de repressão na Rússia

Para ex-editor, que deixou jornal acusando interferência do Kremlin, liberdade de imprensa está ameaçada

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São Paulo

A prisão de um jornalista na Rússia levou a protestos contra o que é identificada como uma crescente onda de repressão à imprensa no país de Vladimir Putin, opondo até os EUA ao Kremlin.

Ivan Safronov, 30, é assessor do chefe da agência espacial russa, a Roscosmos, e foi detido na segunda (6) sob acusação de alta traição.

Segundo investigação do FSB (Serviço Federal de Segurança, principal herdeiro da KGB soviética), desde 2012 Safronov era informante da inteligência da República Tcheca, país membro da Otan (aliança militar ocidental).

O jornalista Ivan Safronov, assessor do chefe da agência espacial russa, em corte de Moscou
O jornalista Ivan Safronov, assessor do chefe da agência espacial russa, em corte de Moscou - Evgenia Novozhenina - 7.jul.20/Reuters

O jornalista fez carreira como especialista de assuntos militares, a maior parte passada no diário de negócios Kommersant (empresário, em russo).

“Isso é um absurdo, todos o conhecemos. Ele era bem informado e publicava reportagens que os militares não queriam ver publicadas”, disse por vídeo Dmitri Simakov, seu chefe desde 2019 em outro jornal econômico, o Vedomosti (notícias).

Na terça (7), um grupo de cerca de 20 pessoas, a maioria jornalista, foi detido ao fazer um protesto em favor de Safronov na frente da sede do FSB, na icônica praça Lubianka, em Moscou.

O ato não era autorizado, segundo a polícia. O grupo pedia um julgamento justo e sustenta que a prisão se deveu ao trabalho anterior do jornalista.

Se for condenado, ele poderá pegar até 20 anos de cadeia. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, negou ação contra a liberdade de expressão e disse acreditar no FSB.

A prisão é o mais recente incidente envolvendo questões de liberdade de imprensa na Rússia, país que está na 149ª posição entre 180 nações avaliadas pela ONG Repórteres sem Fronteiras no quesito.

Fatores geopolíticos sempre falam alto. A porta-voz da embaixada dos EUA em Moscou postou no Twitter preocupação com a detenção e recebeu uma resposta direta do Ministério das Relações Exteriores russo.

“Cuide da sua vida”, dizia o tuíte russo nesta quarta. A legislação russa garante a liberdade de expressão.

Um dos ex-editores-executivos do jornal russo Vedomosti, Dmitri Simakov
Um dos ex-editores-executivos do jornal russo Vedomosti, Dmitri Simakov - Dmitri Simakov no Facebook

Também na segunda-feira, a radialista Svetlana Prokopieva foi condenada a pagar multa de 500 mil rublos (R$ 37,5 mil) por suposta “justificação do terrorismo”.

Em 2018, ao comentar um atentado contra a sede do FSB na cidade de Arkhangelsk, ela citara que o terrorista havia acusado o Estado russo de opressão em redes sociais.

“Sou inocente. Escapei de pegar seis anos de prisão, mas não é uma vitória”, afirmou a repórteres de Pskov, onde foi julgada.

Há um mês, a cúpula do Vedomosti pediu demissão em protesto pela efetivação do editor-chefe Andrei Chmarov, simpático ao Kremlin.

O jornal, fundado em 1993, era independente e tinha participação do Financial Times britânico e do Wall Street Journal americano até 2015, quando o governo vetou tal tipo de propriedade.

“Ficou impossível trabalhar lá”, conta Simakov, 45, que foi um dos cinco editores-executivos a deixar o jornal no dia 15 passado.

Chmarov havia assumido interinamente em março, quando o controle do Vedomosti foi vendido a um empresário pró-Putin.

“Um dos primeiros a assinar o manifesto interno contra Chmarov foi Safronov, e logo ele deixou o jornal. Resistimos por três meses porque, na quarentena do coronavírus, estávamos quase todos em casa”, disse.

“O jornal teve a impressão suspensa, então fazíamos tudo no site como queríamos e não dava para mudar depois. Tivemos liberdade”, disse Simakov.

As principais TVs russas são estatais, e poucos jornais ainda mantêm alguma independência editorial. "Quem é livre não tem licença para operar, como o site Meduza", afirmou, em referência a um projeto jornalístico baseado na Estônia.

Policiais prendem apoiadora de Safronov perto da sede do FSB, serviço secreto russo, na terça
Policiais prendem apoiadora de Safronov perto da sede do FSB, serviço secreto russo, na terça - Dimitar Dilkoff - 7.jul.2020/AFP

Safronov já tinha tido problemas antes. Ele havia deixado o Kommersant num episódio nebuloso —ele havia predito incorretamente a queda do presidente do Senado, mas Simakov atribui sua demissão a pressões externas.

O ponto obscuro na história de Safronov é sua ida para a Roscosmos.

Ele cobria assuntos espaciais também, mas a ida dele causou estranhamento entre alguns colegas de profissão, já que a agência é comandada por Dmitri Rogozin, um nacionalista aliado de Putin.

Simakov, que estava no jornal desde 2002 e disse que vai se dedicar à comunicação corporativa, afirma acreditar que o momento político é ideal para a repressão.

Putin viu aprovada na semana passada a mudança constitucional que abre caminho para ele tentar ficar no poder até 2036, e ao mesmo tempo a crise econômica o pressiona.

“Temos o coronavírus, os preços baixos de commodities. Isso faz o governo precisar parecer forte”, afirma.

Concorda com ele Andrei Kolesnikov, do Centro Carnegie de Moscou, que por escrito disse que a onda de intimidação tende a continuar.

Para ele, a pressão econômica se mostrou eficaz contra a liberdade do Vedomosti, e casos como o de Safronov e Prokopieva mostram que a lei é facilmente aplicável a quem incomoda.

Até 2012, alta traição era uma acusação que demandava a produção de provas, mas uma lei facultou ao FSB e a outras agências liberdade de investigar e prender suspeitos sem necessariamente haver evidências físicas.

Além disso, a redação da lei foi alterada de forma a permitir que especialistas, acadêmicos e jornalistas pudessem sem enquadrados se lidassem com “assuntos de Estado”.

Uma ação corriqueira, a troca de informação com fontes estrangeiras, pode ser lida como traição.

Por vezes, o jogo é mais bruto. De 2000 para cá, foram mortos 28 repórteres na Rússia, ante 34 no Brasil, segundo a ONG Comitê de Proteção aos Jornalistas.

O assassinato mais famoso de uma jornalista ocorreu com Anna Politkovskaia (1958-2006), da Novaia Gazeta (novo jornal).

Crítica de Putin, ela foi morta em 2006 supostamente por tchetchenos envolvidos com gangsterismo, o que nunca convenceu muitos russos.

Outro caso famoso foi o do pai de Safronov, também chamado Ivan (1956-2007) e então repórter do mesmo Kommersant.

Igualmente repórter especialista em defesa e temas correlatos, ele caiu misteriosamente da janela do quinto andar de seu prédio, apesar de morar no terceiro, em 2007.

“Nos anos 2000, o problema era escrever sobre gângsteres. Agora, é escrever sobre o Estado”, disse Simakov.

No ano passado, o jornalista Ivan Gulonov, 36, foi preso e espancado acusado de tráfico de drogas. Ele escrevia para o site Meduza sobre irregularidades no serviço funerário de Moscou que esbarravam em figuras do FSB.

O caso provocou uma reação enorme na Rússia, com o Vedomosti, o Kommersant e outro jornal, o RBK, publicando a mesma manchete em apoio.

Golunov acabou solto, e o Kremlin admitiu o erro judicial, que levou à demissão de policiais. Em conversa com a Folha, o jornalista disse que só haverá mudança no panorama da liberdade de expressão sem Putin no poder.

Naquele ponto, a popularidade de Putin já estava declinante, tendo atingido o menor índice em seus 20 anos de poder agora (59% de aprovação).

Agora, legitimado pelo referendo constitucional que entidades apontam ter sido marcado por fraudes, a pressão sobre o dissenso tenderia a subir, crê Kolesnikov.

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