Descrição de chapéu Folha por Folha

Repórter evitou enviar textos da Belarus e apagou fotos e vídeos de celular antes de partir

Correspondente da Folha na Europa contou com força-tarefa de ativistas para viabilizar viagem ao país

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Minsk (Belarus)

“Foi a noite mais aterrorizante da minha vida. Senti mais medo que na linha de frente em Donbass [onde tropas russas e ucranianas se enfrentaram em 2014]”, disse Jakub, correspondente polonês que havia saído de Minsk e voltado para Varsóvia no dia 11.

Na véspera, ele correu e pulou cercas para escapar da repressão policial. Passou a madrugada agachado, temendo ser visto por agentes da tropa de choque que a cada 15 minutos vinham fumar um cigarro a poucos metros de distância.

Manifestantes durante protesto contra o regime de Lukachenko na Praça da Independência, em Minsk
Manifestantes durante protesto contra o regime de Lukachenko na Praça da Independência, em Minsk - Sergei Gapon - 20.ago.20/AFP

“Meus colegas pegos foram muito espancados. Não há a menor segurança”, afirmou o jornalista na terceira noite de protestos contra a eleição que apontou vitória, sob suspeita de fraudes, de Aleksandr Lukachenko.

As informações eram de 50 repórteres presos, e vídeos na internet mostravam equipes de TV apanhando gratuitamente, apesar de usarem credenciais e coletes de identificação.

Com a pressão sobre a imprensa internacional, era difícil encontrar contatos na Belarus sem os quais reportar no país seria inviável: lá, poucos falam inglês ou línguas latinas.

O russo é a primeira língua, tanto falada quanto escrita. O bielorrusso, língua eslava também oficial, é usada em alguns locais, como o metrô. Ambas usam o alfabeto cirílico, o que complica um pouco a orientação.

Além disso, com o governo prendendo a esmo, o trabalho envolvia riscos para os repórteres e para os guias. O experiente repórter russo indicado por um colega havia sido torturado e deportado, e nomes passados por um jornalista português não atenderam telefonemas nem responderam a mensagens —o bloqueio da internet pelo governo também não ajudava.

Depois de cinco dias de tentativas frustradas, uma força-tarefa de ativistas brasileiros, húngaros e bielorrussos encontraram duas moradoras de Minsk dispostas a fazer as traduções e ajudar a navegar pela cidade.

Passagens e hospedagem foram reservadas seis horas antes do embarque. Não havia tempo para pedir permissão oficial ao governo bielorrusso (e chance diminuta de que ela fosse concedida).

“Leve dinheiro vivo e não mande nenhuma reportagem enquanto estiver lá”, recomendou o colega Igor Gielow, com muita experiência em coberturas de risco.

No desembarque, um aviso pela rede social dizia que os celulares estavam sendo revistados, o que provocou minutos angustiantes à caça de fotografias ou mensagens que precisassem ser apagadas antes de passar pela imigração.

Sem os equipamentos pesados e vistosos de uma equipe de TV, a entrada e a circulação pelo país não tiveram entraves, embora a tensão fosse constante. A presença de estrangeiros não é comum em Minsk e ainda mais inesperada em um momento de tumulto.

A repressão policial havia recuado muito desde a chegada da reportagem da Folha, no dia 15, mas voltou na véspera da partida, no dia 19. Naquela quarta-feira, avenidas do centro foram bloqueadas, isolando toda a quadra do apartamento reservado.

O noticiário mostrava jornalistas poloneses e franceses sendo barrados no aeroporto. As lâmpadas se apagaram justamente no poste em frente à janela do apartamento, aumentando a paranoia e disparando uma sessão noturna de envio de documentos para a nuvem e limpezas do disco do computador.

Apesar da tensão, não houve perguntas na saída do país, e o segundo risco da viagem, o da epidemia de Covid-19, foi afastado por um teste para coronavírus realizado na chegada, que deu negativo.


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Afinal, o que está ocorrendo na Belarus?

Quando e por que começaram os conflitos?
No dia 9, pesquisa que deu mais de 80% dos votos para o ditador Alexandr Lukachenko iniciou ato contra fraude eleitoral, reprimido com brutalidade nas três primeiras noites. Há relatos de surras, estupros e torturas, inclusive de menores de idade e pessoas que não protestavam, com centenas de feridos e ao menos 3 mortos (a ONU fala em 4 mortes).

Quem se manifesta contra o governo? 
Eleitores da oposição, mulheres de todas as idades, entidades de direitos civis, artistas, trabalhadores de algumas grandes estatais, alguns ex-militares, policiais e membros da máquina estatal que renunciaram. Cerca de 300 empresários de tecnologia ameaçaram deixar o país.

Ainda há detidos? 
Segundo a ONU, neste sábado (22) 100 dos 7.000 detidos seguiam presos, dos quais 60 acusados de crimes graves. Ao menos 8 estão desaparecidos.

O que querem os manifestantes?
O protesto não é unificado, mas há 5 reivindicações comuns: 1) a saída de Lukachenko, 2) novas eleições livres, 3) o fim da violência policial, 4) a punição dos responsáveis por tortura, 5) a libertação dos presos políticos.

Os protestos estão aumentando ou refluindo?
Houve alta até o domingo (16) e redução na última semana, mas continuam ocorrendo todos os dias em dezenas de cidades. Greves crescentes até terça (18) foram reprimidas pela polícia e por ameaças de demissão. Renúncias de militares e membros do governo continuam ocorrendo.

As manifestações são apenas contra Lukachenko?
Atos a favor do ditador começaram no dia 16, em Minsk, e em outras cidades. Parte dos participantes são trazidos de ônibus e há relatos de coerção.

A eleição pode ser anulada?
A oposição contestou o resultado na Comissão Eleitoral, mas o recurso foi negado. Nesta sexta (21), a oposição entrou com pedido de anulação no Supremo Tribunal. A resposta deve sair em até cinco dias.

Quem lidera a oposição? 
Não há liderança clara. Svetlana Tikhanovskaia, que assumiu a campanha de seu marido quando ele foi preso, representou uma frente de três candidaturas, mas se exilou na Lituânia após o pleito. Um conselho de transição foi criado, mas o governo não aceitou receber interlocutores e abriu processo criminal contra o grupo.

Qual o interesse russo na Belarus?
O país separa a Rússia das tropas da Otan situadas na União Europeia e passam por ele um quinto do gás e um quarto do petróleo exportados pelos russos para a Europa.

A Rússia pode intervir contra os manifestantes? 
É improvável, pois o apoio explícito de Putin a um líder considerado ilegítimo poderia mudar o atual quadro de simpatia dos bielorrussos por Moscou.

Lukachenko pode cumprir o 6º mandato?
Depende da força e da duração dos protestos e greves, da pressão de empresários externos, da defecção de membros do alto escalão do governo e da existência de alternativas consideradas confiáveis pela Rússia.

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