Venezuela usa forças de segurança para reprimir infectados por coronavírus

Regime trata doentes como bioterroristas, intimida médicos e prende viajantes em locais insalubres

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Caracas | The New York Times

O ditador venezuelano, Nicolás Maduro, está enfrentando o coronavírus como enfrenta qualquer ameaça interna a seu domínio: usando seu aparato de segurança repressor.

Funcionários do governo venezuelano denunciam como “bioterroristas” as pessoas que podem ter tido contato com o vírus e pedem aos vizinhos que as delatem às autoridades. O regime detém e intimida médicos e especialistas que questionam as políticas usadas por Maduro contra a doença.

Policiais prendem pessoas suspeitas de violar a quarentena em Caracas
Policiais prendem pessoas suspeitas de violar a quarentena em Caracas - Adriana Loureiro Fernandez - 31.jul.20/The New York Times

E também encurrala milhares de venezuelanos que voltam a seu país depois de perder seus empregos no exterior, mantendo-os em centros de contenção improvisados, por medo de que possam estar infectados.

Em hotéis, escolas desativadas e estações rodoviárias fechadas, os venezuelanos que voltam ao país são forçados a ocupar salas apinhadas, com água, alimentos e máscaras limitados, e mantidos sob guarda militar durante semanas ou meses para ser submetidos a testes ou tratamentos de coronavírus com medicamentos sem eficácia comprovada. É o que revelam entrevistas com pessoas detidas, vídeos que elas fizeram com seus celulares e documentos do governo.

“Nos disseram que estamos contaminados, que somos culpados por infectar o país”, afirma o enfermeiro Javier Aristazabal, de Caracas. Ele conta que, quando voltou da Colômbia, em março, passou 70 dias em centros desse tipo.

Em uma grande cidade, San Cristóbal, militantes do partido governista fixam placas nas casas de famílias suspeitas de terem o vírus e as ameaçam com detenção, contaram moradores.

Em outra cidade, Maracaibo, a polícia patrulha as ruas à procura de venezuelanos que reingressaram no país sem aprovação oficial. Políticos oposicionistas locais cujas bases eleitoras registram um surto de coronavírus contam que são ameaçados com processos judiciais.

“Este é o único país do mundo em que ter Covid é crime”, comentou o militante oposicionista Sergio Hidalgo. Ele contou que apresentou sintomas da doença e então se deparou com policiais e funcionários governamentais diante de sua porta, acusando-o de contaminar a comunidade.

Enquanto a pandemia varria os países vizinhos, sobrecarregando redes de saúde muito mais bem preparadas do que o falido sistema de saúde venezuelano, Maduro adotou uma abordagem de linha dura, tratando o coronavírus como uma ameaça à segurança nacional que pode desestabilizar seu país quebrado e enfraquecer seu controle do poder.

“Está claro que a pandemia representa uma ameaça ao governo, na medida em que ressalta a precariedade de seus recursos”, comentou o cientista político John Magdaleno, em Caracas. “A prioridade não é enfrentar a pandemia. É a sobrevivência política de curto prazo.”

Em seus sete anos no poder, Maduro supervisionou o colapso do sistema de saúde venezuelano, a destruição da economia nacional e o isolamento crescente do país.

Analistas políticos disseram que, com cada vez menos recursos para preparar os hospitais falidos do país ou ajudar sua população já depauperada a sobreviver à crise, Maduro lançou mão de instalações de detenção improvisadas, repressão e coerção para tentar impedir o vírus de tomar conta do país.

A abordagem intransigente do governo pode estar obrigando mais pessoas a ficar em casa, desacelerando a propagação do vírus, mas também desencoraja os doentes de buscar ajuda. Isso, por sua vez, dificulta ainda mais o combate à pandemia, disseram médicos venezuelanos.

“Quando as pessoas adoecem, pensam que têm um problema legal ou com a polícia, como se fossem delinquentes”, explica o médico Julio Castro, que assessora o Congresso, controlado pela oposição, em questões ligadas à saúde. “Por isso mesmo, elas preferem se esconder.”

É quase impossível avaliar a abrangência real da pandemia na Venezuela, país que já há anos parou de divulgar estatísticas de saúde tão básicas quanto as cifras de mortalidade infantil.

Mas, com 20 altos funcionários governamentais informando que receberam diagnóstico de coronavírus e alguns médicos avisando que os hospitais estão quase com sua capacidade máxima esgotada, a situação pode ser muito pior do que dá a entender a contagem oficial de 288 óbitos em um país de cerca de 30 milhões de habitantes.

Médicos e jornalistas que questionam as cifras oficiais contam ter sofrido ameaças. Pelo menos 12 médicos e enfermeiros venezuelanos teriam sido detidos por dar declarações públicas sobre o coronavírus, segundo sindicatos do setor.

Migrantes venezuelanos que voltam ao país depois de perder seu trabalho no exterior na esteira da pandemia são especialmente visados.

Segundo o governo da Colômbia, cerca de 95 mil venezuelanos retornaram desde março, e outros 42 mil aguardam na fronteira sua vez de fazerem a travessia.

Pelas diretrizes impostas pelo governo venezuelano, apenas 1.200 venezuelanos podem retornar a cada semana pelo posto principal de travessia da fronteira.

Outros são obrigados a aguardar por meses em acampamentos improvisados. Aqueles que utilizam trilhas irregulares para atravessar a fronteira terrestre porosa são publicamente rotulados de ameaças.

No Twitter, as Forças Armadas venezuelanas exortam a população a delatar os chamados bioterroristas –uma alusão a venezuelanos que se esquivaram dos controles da fronteira e voltaram para seu país.

Policial retém cidadãos por horas para explicar a importância da quarentena, em Caracas
Policial retém cidadãos por horas para explicar a importância da quarentena, em Caracas - Adriana Loureiro Fernandez-31.jul.20/The New York Times

O New York Times entrevistou sete venezuelanos que ficaram detidos em centros de contenção. Vários deles contaram que ficaram apinhados em cômodos sem camas, comida quente, janelas ou água potável suficiente.

“Não dava para pedir ajuda a ninguém. A única coisa que recebíamos eram xingamentos”, contou Aristizabal, o enfermeiro, que foi transferido entre vários centros depois de retornar de uma visita à sua mãe na Colômbia.

Durante o tempo que passou detido, Aristizabal contou que dormiu no chão algumas vezes –no asfalto de uma rodoviária ou no chão de um quarto de hotel sem janelas que dividiu com cinco outras pessoas.

Algumas pessoas contaram que ficaram detidas com bebês de 1 ano de idade, sem medidas especiais para proteger as crianças. Outras disseram que foram forçadas a tomar os medicamentos incluídos no protocolo oficial para o tratamento de qualquer pessoa que tenha o coronavírus ou seja suspeita de ter, mesmo sem apresentar qualquer sintoma.

Os medicamentos incluídos nos protocolos do governo não têm eficácia comprovada no tratamento de coronavírus e podem ter consequências perigosas. Eles incluem a hidroxicloroquina, que a FDA (Food and Drug Administration, órgão americano que controla medicamentos) avisou que pode provocar arritmias cardíacas graves em pacientes com coronavírus, e o antiparasitário ivermectina, que a OMS disse que não deve ser usado para tratar a Covid.

Vídeos feitos por venezuelanos em centros de confinamento revelaram condições sanitárias precárias. Várias pessoas disseram que não estão recebendo tratamento para doenças preexistentes, que receberam uma única máscara para usar durante todo o tempo que passam no centro e que é impossível praticar distanciamento social.

Mas o pior de tudo, disseram, era não ter ideia de quanto tempo ficariam detidas.

Em um vídeo divulgado por um parlamentar oposicionista, cinco homens e mulheres idosos envoltos em cobertores sujos estão apinhados numa salinha sem janelas, com cadeiras dilapidadas e uma beliche sem colchões. O lugar seria uma estação de primeiros socorros mantida pelo governo em Caracas.

“Me tirem daqui, por favor”, disse um homem visivelmente angustiado. “Estou morrendo aqui. Me sinto pior a cada dia que passa.”

Maduro afirma que sua reação rápida –ele impôs o "lockdown" no país em 17 de março, imediatamente depois de serem confirmados os dois primeiros casos de coronavírus no país— permitiu à Venezuela evitar a devastação sofrida por países vizinhos.

Oficialmente, a Venezuela tem um dos índices de contaminação mais baixos da região. Cinco meses depois de detectado o vírus, o número de mortes diárias em nenhum momento passou de 12, segundo o governo.

“Você recebe um atendimento único no mundo, um atendimento humano, amoroso, cristão”, disse Maduro em discurso à nação em 14 de agosto.

Mas especialistas em saúde dizem que as baixas cifras oficiais se devem aos índices baixíssimos de testes. Há pouco acesso a testes precisos de coronavírus, e eles levam semanas para serem processados em um dos dois laboratórios aprovados pelo governo, segundo disseram oito médicos em três Estados venezuelanos entrevistados para esta reportagem.

Temendo represálias do governo, os médicos não quiseram revelar seus nomes.

A maioria dos pacientes com sintomas de Covid-19 não chega a ser testada ou morre antes de receber os resultados, razão pela qual nunca chegam a ser incluídos nas estatísticas oficiais, disseram os médicos.

Tradução de Clara Allain  

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