Crimes de guerra seguem na Síria, mas cessar-fogo reduziu hostilidades, diz relatório da ONU

Pandemia de coronavírus também contribuiu para diminuição da intensidade dos conflitos

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Brasília

O cessar-fogo na guerra civil da Síria, pactuado entre Rússia e Turquia em março, surtiu efeito e reduziu a intensidade das hostilidades e dos ataques, mas crimes de guerra seguem sendo cometidos por todos os lados do conflito, segundo um relatório da Comissão Independente de Inquérito para a Síria, do Conselho de Direitos Humanos da ONU, publicado nesta terça-feira (15).

Segundo o documento, além do cessar-fogo, a pandemia da Covid-19 também contribuiu para a redução das hostilidades, com restrições de circulação e fechamento de fronteiras internas. Apesar disso, surtos de violência e constantes violações de direitos humanos continuam ocorrendo por todo o país.

A Síria vive uma guerra civil desde 2011, na qual grupos rebeldes e o grupo terrorista Estado Islâmico (EI) combatem o governo do ditador Bashar al-Assad, mas também lutam entre si.

Uma carreata de casamento atravessa a área residencial de Jabal al-Arbain, na cidade de Ariha, controlada pelos rebeldes na província de Idlib - Omar Haj Kadour - 14.ago.2020/AFP

Diversas potências estrangeiras se envolveram no conflito. A ditadura quase foi derrotada, mas em 2015 Moscou interveio e instalou um destacamento aéreo no país, revertendo a sorte do aliado com o apoio terrestre de forças iranianas e do grupo libanês Hizbullah.

Os EUA, por sua vez, ajudavam os curdos, um dos grupos rebeldes, mas, de forma abrupta, Washington decidiu abandoná-los em outubro do ano passado, o que abriu caminho para uma operação da Turquia contra a população da maior nação apátrida do mundo.

Já a Turquia apoia os rebeldes do Exército Nacional Sírio, o antigo Exército Livre da Síria, contrários a Assad e que se concentram hoje na província de Idlib. É nessa província que o cessar-fogo acordado com a Rússia tem validade. Relatórios mostram que, de fato, após o acordo, o número de mortos despencou.

O Observatório Sírio de Direitos Humanos, uma ONG britânica que monitora o conflito com base em uma rede de fontes locais, estima que, em nove anos de guerra, completados em março, cerca de 586 mil pessoas morreram, das quais mais de 384 mil foram documentadas pela organização. Entre as quase 600 mil mortes, mais de 200 mil foram de civis.

No entanto, após fevereiro registrar um recorde de mortos em 23 meses, com 1.771 fatalidades, o número vem caindo seguidamente. Em março foram 508 mortes, e nos meses subsequentes o total ficou sempre próximo de 300, até bater 238 em agosto, o menor já registrado desde o início do conflito.

Além dos três lados mencionados anteriormente, há também o Estado Islâmico, que, apesar de ter perdido a maior parte do território sob seu controle, segue ativo em algumas regiões do país.

Segundo os investigadores, o grupo terrorista segue realizando ataques contra as Forças Democráticas Sírias, na região nordeste, e contra o Exército Árabe Sírio, do governo de Assad, na região central.

No entanto, violações de direitos humanos e crimes de guerra não são cometidos apenas pelos radicais do EI. Para os investigadores, nenhum dos lados do conflito tem "mãos limpas". "Todos os atores controlando territórios continuam sujeitando civis a abusos", dizem em nota.

Em áreas controladas pelo governo, a comissão registrou "52 ataques emblemáticos marcados por crimes de guerra" realizados "por todas as partes", com dezenas de mortes de civis, em especial antes do cessar-fogo. A comissão afirma que, como resultado das ações, quase 1 milhão de pessoas tiveram que fugir, e a maioria continua vivendo em campos de refugiados de condições precárias.

"Cerca de 220 mil retornaram para viver em meio a escombros em áreas que permanecem sob controle do grupo terrorista Hayat Tahrir el Salam", diz o documento, em referência ao grupo radical islâmico ligado à Al-Qaeda e que atua na Síria.

O documento também relata uma série de desaparecimentos. Em alguns casos, o sumiço já dura oito anos, "demonstrando a longevidade dessa prática".

Além disso, o aparato de segurança estatal segue reprimindo a população civil e detendo pessoas sem o devido processo legal, mantendo-as sem comunicação, em condições sub-humanas e com inúmeros relatos de torturas em instalações do governo.

"A comissão documentou 13 relatos de torturas de pessoas mantidas em detenção por autoridades sírias, com algumas sendo torturadas por longos períodos, até mais de sete anos", diz o relatório. "Em linha com padrões anteriores, os presos eram agredidos com cabos e bastões, amarrados em torno de pneus, pendurados em tetos e paredes e chicoteados."

Um dos entrevistados detalha como dividia uma cela de 2 metros quadrados com 11 presos. Outro, afirma ter ficado em uma solitária ainda menor sem colchão ou cobertor por três meses.

Um terceiro detalha um corte de água de 23 dias em sua cela. O espaço, que incluía o banheiro, ficou repleto de urina, fezes e vômito. Outro entrevistado afirma que geralmente recebia durante um dia inteiro um pedaço de pão e quatro azeitonas para se alimentar. Os presos chegavam a comer os caroços.

O documento também afirma que diversas prisioneiras —e também prisioneiros— foram abusados sexualmente por funcionários do governo. "A comissão tem motivos razoáveis para acreditar que o governo da Síria, em uma política de Estado continuada, seguiu perpetrando crimes contra a humanidade", diz o relatório. "Em alguns casos, esses atos também podem constituir crimes de guerra."

Entre o Exército Nacional Sírio, apoiado pelos turcos, as violações também foram recorrentes, em muitos casos "com tons sectários". Nas detenções, civis —especialmente os de origem curda— eram espancados e torturados, tinham acesso a água e comida negados e eram interrogados sobre sua fé e etnia. Mulheres e meninas seguem sujeitas a estupros e violência sexual.

Segundo o documento, há informações indicando a transferência de presos sírios para a Turquia, por forças turcas. Eles então são indiciados por crimes que teriam sido cometidos na Síria, mas julgados sob a legislação criminal turca. "A comissão nota que transferências de presos sírios para território turco podem ser considerados crimes de guerra por deportação ilegal de pessoas protegidas", diz o relatório.

Outros crimes muito comuns entre esse lado do conflito durante o período registrado foram os saques e os confiscos de propriedades de civis. Há evidências de padrões sistemáticos da prática pelo Exército Nacional Sírio.

"Na região de Afrin, múltiplos relatos indicam que as propriedades de curdos foram saqueadas e apropriadas" de maneira coordenada, diz o documento.

Entre os casos, o relatório afirma que, na cidade de Ra's al-Ayn, os rebeldes marcaram as paredes das casas com os nomes das brigadas que assumiriam o controle do território, e que itens saqueados eram transportados e vendidos em um processo coordenado, "o que pode indicar uma política premeditada".

Segundo o documento, um homem que decidiu retornar para sua vila encontrou a casa saqueada, incluindo janelas, portas e geradores. Ele teve de comprar os itens de volta em um galpão controlado por um membro do Exército Nacional Sírio. Depois de recuperar algumas de suas coisas, fugiu novamente.

Em outro episódio, a casa de uma família curda foi apropriada e depois convertida em um instituto de estudos do Alcorão por uma ONG turca chamada Fundação para Direitos Humanos, Liberdades e Alívio Humanitário. Em sua inauguração, o governador da província turca de Sanliurfa estava presente.

Civis que tentavam reclamar da situação eram ameaçados, extorquidos e detidos. Em alguns casos, desapareciam, e taxas eram exigidas para que fossem libertados.

O documento indica nominalmente uma série de brigadas e afirma que elas "perpetraram repetidamente os crimes de guerra de pilhagem e que talvez sejam responsáveis pelo crime de guerra de destruir e confiscar propriedade de adversários".

Atacados pelos turcos, os curdos também não escapam da regra. O relatório aponta a ocorrência de prisões arbitrárias, tortura e maus-tratos, além de detenções sem comunicação por até um ano.

"Em quatro casos, os indivíduos indicaram que haviam sido interrogados em múltiplas ocasiões por forças de segurança dos Estados Unidos", diz o relatório.

O documento é referente ao período de 11 de janeiro a 1º de julho deste ano e foi produzido a partir de 538 entrevistas conduzidas pessoalmente, na Síria e em Genebra, na Suíça. Segundo a comissão, as informações relatadas foram confirmadas a partir de documentos oficiais, registros, fotografias, vídeos e imagens de satélites coletadas de diversas fontes.

Na conclusão, a comissão recomenda uma ampliação do cessar-fogo para todo o território sírio, a libertação em larga escala de prisioneiros, a interrupção imediata de torturas e outros tratamentos e punições desumanas, incluindo estupro e abuso sexual, e a interrupção de saques e confisco de propriedades de civis e de locais arqueológicos e religiosos.

À comunidade internacional a comissão pede que os países removam os obstáculos à entrada de ajuda humanitária e suspendam as sanções sobre a Síria, que por vezes dificultam o acesso a esse auxílio.

Também recomenda que os países repatriem seus cidadãos que tenham supostas associações com o Estado Islâmico, em especial mães e filhos alocados em campos de refugiados.

Finalmente, o documento recomenda a todos os Estados membros da ONU que sigam buscando responsabilizar os perpetradores das violações registradas no país.

A comissão afirma que continuará o trabalho produzido desde 2011, mas indica que o levantamento é prejudicado pela falta de acesso da equipe ao país. Composta por quatro investigadores, entre eles o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, a comissão foi estabelecida em março de 2011 e tem como objetivo investigar e registrar todas as violações do direito internacional durante o conflito.

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