Descrição de chapéu Eleições EUA 2020

Desinformação se tornou marca registrada das eleições dos EUA, e negros são grande alvo

Redes sociais adotam mudanças para tentar barrar disseminação de fake news durante processo eleitoral

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São Paulo

No início de outubro, surgiram no Twitter dezenas de contas identificadas com fotos de americanos negros postando mensagens como “SIM, SOU NEGRO E VOU VOTAR NO TRUMP!”.

Os perfis desses supostos apoiadores do presidente ganharam milhares de seguidores em poucos dias, mas foram suspensos pelo Twitter por violarem as regras da plataforma —eram falsos, administrados por robôs ou pessoas contratadas para se fingir de eleitores do republicano.

Mesmo assim, as mensagens foram reproduzidas ou mencionadas mais de 265 mil vezes, de acordo com levantamento de um pesquisador da Universidade Clemson. Em agosto, a rede social já tinha derrubado uma outra conta que exibia a foto de um jovem negro. Ele seria um ex-manifestante ligado ao movimento Black Lives Matter (vidas negras importam) que se converteu ao Partido Republicano.

“Fui eleitor dos democratas a vida inteira. Juntei-me aos protestos do Black Lives Matter meses atrás, quando começaram. Não tinha me dado conta de que virei um marxista. Aconteceu e nem percebi. Para mim, chega deste lixo. Vou me registrar como republicano”, dizia o “jovem” em vídeo repostado 22 mil vezes.

Manifestante segura cartaz com o nome do movimento Black Lives Matter (vidas negras importam) durante protesto em Seattle
Manifestante segura cartaz com o nome do movimento Black Lives Matter (vidas negras importam) durante protesto em Seattle - Lindsey Wasson - 1.jun.20/Reuters

O eleitorado negro dos Estados Unidos é um dos principais alvos das campanhas de desinformação, ou fake news, que se tornaram marca registrada das eleições do país desde 2016. Naquele ano, o grande objetivo da campanha de Donald Trump era suprimir o voto dos negros.

Como os afro-americanos tendem a votar em democratas, a campanha republicana desenhou uma estratégia digital para desestimulá-los a sair de casa, uma vez que o voto nos EUA não é obrigatório, evitando que concretizassem o apoio à então candidata Hillary Clinton.

Para isso, enviaram a usuários negros do Facebook vídeos com um trecho de um discurso da democrata, de 1996, quando ela usou a expressão “superpredadores” para falar de criminosos —republicanos afirmam que ela se referia a negros, embora Hillary nunca tenha os chamado diretamente pelo termo.

Outras mensagens eram até mais óbvias. Um anúncio exibia fotos de Martin Luther King Jr. e Malcolm X junto com a frase “Ninguém representa o povo preto. Não vá votar. Só assim podemos mudar as coisas”.

Muitas dessas campanhas de desinformação, mostrou a investigação do procurador especial Robert Muller, foram realizadas pelos russos da Internet Research Agency, ligada ao Kremlin. Ainda que o relatório tenha apontado que o esforço "abrangente e sistemático" era feito na tentativa de eleger o republicano, a equipe de Muller não concluiu ter havido conluio com a campanha de Trump.

As contas russas também espalharam notícias falsas sobre Hillary. Diziam que a democrata estava envolvida em rituais satânicos e participava de uma rede de pedófilos que traficava crianças.

A narrativa foi absorvida pelo QAnon, teoria conspiratória segundo a qual Trump tenta derrotar um “Estado profundo” infiltrado no governo e formado por uma elite de pedófilos ligada ao Partido Democrata.

O diretor do FBI, Christopher A. Wray, afirmou que a Rússia está ativamente engajada em operações de desinformação para influenciar a eleição de 2020, repetindo táticas usadas em 2016. China e Irã, diz o chefe da polícia federal dos EUA, também estão engajados em ações do tipo, mas em escala muito menor.

Mas não são só potências estrangeiras que espalham desinformação com objetivos políticos nos EUA.

Em junho, Trump repostou um vídeo de um homem branco, funcionário de uma loja de departamentos, sendo esmurrado por um negro. Escreveu: “Olhe o que está acontecendo aqui. Onde estão os protestos?”.

Em outro vídeo reproduzido pelo presidente, um homem negro empurrava uma mulher branca em um vagão do metrô. “Isso é terrível!”, afirmou o republicano.

“O efeito é que, após uma pessoa ver um, dois, três, quatro vídeos desses, ela pensa que isso está acontecendo nos EUA inteiro, que ativistas do Black Lives Matter estão batendo em brancos”, diz Pablo Ortellado, professor de gestão de políticas públicas da USP que pesquisa desinformação há anos.

Muitas vezes, o objetivo nem é favorecer um candidato. A ideia é acirrar a polarização, causando instabilidade. Desde que a interferência russa na eleição de 2016 foi confirmada, e as consequências de campanhas de desinformação, conhecidas, as plataformas de internet intensificaram a vigilância.

O Twitter passou a proibir publicidade política no ano passado, e o Facebook anunciou que banirá esse tipo de anúncio depois do dia 3 de novembro. A plataforma já havia aumentado a transparência sobre quem contrata as propagandas políticas, quanto é gasto e quais são os públicos-alvo.

Neste ano, as empresas começaram a colocar alertas, diminuir o alcance ou derrubar posts que infringiam regras de uso, tais como informações sem comprovação científica que ameaçam a saúde pública (cloroquina cura Covid-19); glorificação da violência (endosso à repressão de atos antirracismo) e ameaça à integridade do processo eleitoral (afirmar, sem comprovação, que a votação pelo correio será fraudada).

Parte das mensagens rotuladas e com alcance reduzido era do próprio Trump, disseminando mensagens de que a votação será fraudada e estimulando pessoas a votarem duas vezes, “só para garantir”.

As plataformas também querem evitar um repeteco da operação russa “hackear e vazar” de 2016.

Há quatro anos, redes sociais e mídia tradicional foram usadas pelo Kremlin para influenciar a eleição, ao disseminarem amplamente o vazamento de emails do comitê democrata —as mensagens mostravam, por exemplo, o conteúdo de palestras de Hillary a investidores do banco Goldman Sachs.

Desta vez, com medo de estarem diante de outra tentativa de interferência, as empresas censuraram ou diminuíram o alcance de uma reportagem do tabloide conservador New York Post sobre emails que seriam de Hunter Biden, filho do candidato democrata.

Posteriormente, o Twitter reviu a posição e admitiu ter errado ao bloquear o compartilhamento do artigo. Ambas as redes dizem ter agido enquanto checavam as informações sobre a veracidade da reportagem.

Não existem pesquisas que comprovem que campanhas de desinformação mudam o resultado de eleições nem que tenham custado a vitória a Hillary. Por outro lado, "a gente sabe que fake news colabora em alguma medida, mesmo que seja para radicalizar as pessoas e fazer elas votarem”, diz Ortellado.

Segundo o pesquisador, o compartilhamento de mensagens desinformativas está muito associado a sentimentos fortes de raiva, ódio, medo e indignação, todos eles muito mobilizadores.

“Não é à toa que o pessoal gasta dinheiro produzindo conteúdo desinformativo”, afirma. “Mas desinformação, sozinha, não ganha eleição. Ela faz parte de um grande conjunto de estratégias políticas."

O que está claro é que, ao acirrar a polarização, a desinformação corrói a democracia.

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