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Depoimento: 'Buenos Aires deixou ainda mais evidentes suas desigualdades durante a pandemia'

Não dá pra desfrutar um vinho enquanto uma família de moradores de rua reparte os restos de um almoço do outro lado da rua

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Buenos Aires

"Querem comprar um lenço, para ajudar?", diz o menino que se aproxima da mesa em que estou sentada com um par de amigos, do lado de fora de um restaurante, em Buenos Aires.

Comovidos pelo olhar do garoto, damos uma nota de 200 pesos (R$ 12,50 no mercado oficial, praticamente o dobro no paralelo).

Crianças argentinas durante a pandemia do novo coronavírus em Laferrere, na periferia de Buenos Aires
Crianças argentinas durante a pandemia do novo coronavírus em Laferrere, na periferia de Buenos Aires - Agustin Marcarian - 15.dez.20/Reuters

A conversa recomeça, mas logo é interrompida de novo, agora por uma moça, de sotaque venezuelano, com um bebê no colo: "Querem comprar esses cartões de Natal? Eu mesma fiz". Vai a segunda nota de 200 pesos.

Chega a comida, e então aparece um rapaz, algo embriagado, com a camiseta de um dos principais times de futebol da cidade. Sua máscara está no queixo, e ele conta como foi perder o emprego na pandemia do coronavírus. Soltamos outra nota, com a recomendação de que, por favor, use a máscara direito, acima do nariz.

A essa altura, o prato que pedimos já não parece a iguaria sonhada de minutos atrás, e sim um insulto social. Falamos pouco. A conta vem, e, por causa de uma inflação acumulada de 30% em 2020, o preço cai tão mal no estômago quanto a comida.

Vamos amontoando as notas de pesos argentinos, cada vez mais desvalorizados, sobre a mesa.

Como ocorreu em diversos centros urbanos do mundo, Buenos Aires deixou ainda mais evidentes as suas desigualdades durante a pandemia.

Segundo os dados oficiais do Indec (o IBGE argentino), 44% da população da população está na pobreza. E, durante a pandemia, este número ganhou rosto e nome, com as pessoas vagando pelas ruas atrás de um bico ou pedindo esmolas para quem voltou a passear ao ar livre após a flexibilização das restrições.

Nos bairros de Palermo ou de Santelmo, vários bares e restaurantes faliram. Ver suas portas metálicas fechadas e os avisos de "vende-se" dá um aperto no peito.

Os que aguentaram ficar quase seis meses trabalhando apenas com delivery agora podem reabrir para o público, mas ainda assim apenas com ocupação de 25% de seu interior, além de mesas ao ar livre. Nada mal para o início da primavera, que faz com que estar do lado de fora seja uma experiência agradável.

Nessa situação, porém, as desigualdades da cidade ficam ainda mais evidentes. E não dá para desfrutar uma taça de Malbec numa linda calçada enquanto, do outro lado da rua, uma família de moradores de rua reparte os restos de um almoço doado por clientes de um dos restaurantes. Desde o início da pandemia, já há na Argentina mais 300 mil novos desempregados, de acordo com os números do Indec.

O setor cultural também sofre, já que não há cinemas nem teatros abertos, muito menos casas de tango.

Os atores até encontram uma nova alternaviva no streaming, mas os dançarinos de tango passam maus momentos. Enquanto alguns tentam se virar dando aulas pela internet, outros pedem ajuda ao governo.

Filmes com as estrelas locais, preparados para ser grandes estreias comerciais, foram direto para o streaming. A pandemia ameaça colocar de vez um fim nos cinemas de rua, que já estavam em crise por conta das salas multiplex, mas que ainda eram uma marca da vida portenha.

Ou seja, a imensa oferta de atrações culturais, um dos grandes atributos de Buenos Aires, está adormecida.

A alternativa são os numerosos e belos parques e praças públicos. Com a chegada da primavera, é neles que se desenvolve boa parte da vida social, esportiva, artística e até escolar.

Há personal trainers ou aulas de academias transportadas para as áreas verdes, piqueniques familiares e até reunião de pais com filhos pequenos para tentar ensinar-lhes algo do ano escolar perdido —desde o início da quarentena, em 20 de março, os colégios estão fechados.

Quando o evento mais unificador dos portenhos neste 2020 foi o sentimento de luto no velório do maior jogador de futebol argentino de todos os tempos —Diego Armando Maradona— e que ainda por cima terminou num verdadeiro caos, é porque esse 2020 foi um ano que os habitantes de Buenos Aires realmente vão preferir esquecer.

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