Em Bergamo, sobreviventes da pandemia carregam cicatrizes invisíveis e incalculáveis

Atormentadas por culpa, raiva e arrependimento, vítimas do lugar mais atingido na Itália lutam para entender como vírus os mudou

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Nembro (Itália) | The New York Times

Todas as segundas-feiras à noite, na cidade do norte da Itália que talvez tenha tido o índice mais alto de mortos por coronavírus em toda a Europa, uma psicóloga especializada em estresse pós-traumático conduz sessões de terapia em grupo na igreja local.

“Ela já tratou sobreviventes de guerras”, disse o reverendo Matteo Cela, o pároco de Nembro, na província de Bergamo, “e diz que a dinâmica é a mesma”.

Primeiro o vírus explodiu em Bergamo. Depois veio o choque absoluto. A província que foi a primeira a proporcionar ao Ocidente uma prévia dos horrores que estavam por vir –avós famintos por oxigênio, hospitais superlotados, comboios de carros funerários levando caixões por ruas fechadas para o trânsito— agora funciona como um perturbador cartão postal mostrando o “dia seguinte” pós-traumático.

Sara Cagliani é abraçada por familiares e amigos durante missa em memória de seu pai, em Bergamo, na Itália
Sara Cagliani é abraçada por familiares e amigos durante missa em memória de seu pai, em Bergamo, na Itália - Fabio Bucciarelli - 24.jul.20/The New York Times

Em cidades pequenas onde muitas pessoas se conhecem, há uma preocupação com as outras pessoas, mas os sobreviventes também se alternam entre sentimentos de culpa, raiva, dúvidas sobre decisões fatídicas tomadas e pesadelos sobre pedidos feitos por doentes no leito de morte e não atendidos.

Há um clima generalizado de ansiedade no ar, o medo de que, com o vírus se alastrando novamente, o enorme sacrifício feito por Bergamo caia no esquecimento, virando nada mais que história passada –que suas cidades virem esquecidos campos de batalha da primeira grande onda, que seus mortos não passem de nomes gravados em mais uma placa que acumula ferrugem.

Sobretudo, porém, há um esforço coletivo para compreender como o vírus transformou as pessoas. Não apenas seus anticorpos, mas elas próprias. “A doença me deixou mais fechada”, diz Monia Cagnoni, 41, que perdeu sua mãe para o vírus e teve pneumonia. Ela estava sentada na escada da casa de sua família, guardando alguma distância de seu pai e sua irmã. “Hoje em dia sinto mais vontade de ficar sozinha.”

Sua irmã Cinzia, 44, que preparava café e bolo na cozinha, teve o impulso oposto. “Sinto ainda mais necessidade das outras pessoas”, disse ela. “Não gosto de ficar sozinha.”

Como todos os lugares, Bergamo agora enfrenta a segunda onda do vírus. Mas seu sacrifício a deixou mais preparada para isso do que a maioria dos lugares. Segundo médicos, o alto índice de infecção da primeira onda conferiu algum grau de imunidade a muitas pessoas.

E os médicos da província adquiriram experiência com os protocolos pavorosos do vírus, tanto que estão até recebendo pacientes de fora da região para aliviar a sobrecarga de hospitais superlotados próximos.

Mas ao mesmo tempo em que o contágio de fora ainda ameaça a província, as feridas deixadas pela primeira onda do vírus a corroem por dentro.

Falar desses assuntos não é fácil para os habitantes do coração industrial da Itália, cheio de fábricas têxteis e metalúrgicas, indústrias de papel, chaminés fumegantes e grandes galpões industriais. Eles praticamente pedem desculpas quando revelam que estão sofrendo.

Na cidade de Osio Sopra, Sara Cagliani, 30, não consegue se perdoar por não ter atendido ao último pedido feito por seu pai antes de morrer.

Uma placa no portão de sua casa diz “aqui vive um soldado alpino”. Quando a crise do coronavírus começou, seu pai, Alberto Cagliani, ofereceu-se para ajudar. Disse à sua filha: “Não esqueça que sou um soldado alpino, e nunca deixamos de comparecer em uma emergência”.

Depois de aposentar-se de seu trabalho de motorista de caminhão, ele se ofereceu para trabalhar como voluntário para uma funerária. Percorria a província buscando os corpos de homens mortos em acidentes de carro e os vestia nos ternos dados por suas famílias. Em fevereiro ele voltou a se voluntariar, mas dessa vez o número de cadáveres a recolher era enorme.

Alberto ficou taciturno e deixou de voltar para casa para comer. “É uma matança sem fim”, disse à sua filha. Em 13 de março, depois de recolher o corpo de mais uma vítima, ele sentiu uma dor no ombro direito que se espalhou para a região lombar. Sua voz se enfraqueceu. O som da televisão passou a incomodá-lo.

Em 21 de março sua esposa o viu tocando as toalhas no banheiro apenas para verificar se ainda conseguia senti-las, porque as pontas de seus dedos estavam dormentes. Em seguida, suas pernas ficaram entorpecidas. Ele morreu de Covid no dia seguinte, com água nos pulmões.

Seu último desejo foi ser enterrado em seu uniforme de soldado alpino. Procurando honrar sua vontade, sua filha enviou o casaco e as calças verdes do uniforme à funerária. Os funcionários mandaram o traje de volta, explicando que o medo do contágio os impossibilitava de vestir os corpos dos mortos.

“O que mais me doeu e do que mais me arrependo foi ele ter sido colocado em um saco”, disse Cagliani, chorando. Ela contou que começou a fazer terapia com uma psicóloga e que a tragédia marcou muitas pessoas em sua cidade. “As pessoas estão com medo de se verem. Falta afeto, faltam abraços, toques.”

Outras pessoas ainda estão atormentadas pelas escolhas horríveis que o vírus as obrigou a fazer.

Em meados de março, Laura Soliveri começou a cuidar de sua mãe, que desenvolvera sintomas de Covid na cidade de Brignano Gera d’Adda, em Bergamo.

Os médicos lhe disseram que não tinham máscaras e não viriam examinar sua mãe. Seu irmão, que é farmacêutico, aconselhou Soliveri a não deixar que sua mãe fosse levada ao hospital ou colocada numa ambulância. Disse que se isso fosse feito a família nunca voltaria a vê-la.

Soliveri, que é professora primária e tem 58 anos, percorreu a região em busca de tanques de oxigênio para saciar a sede de ar de sua mãe. Finalmente encontraram um, e sua mãe melhorou.

Então seu marido, Gianni Pala, também pegou o vírus. Ela e seus familiares fizeram tudo para encontrar mais oxigênio, desta vez para ele. Não podiam tirar o oxigênio de sua mãe. A condição de Pala deteriorou, e ele teve que ser hospitalizado. Morreu em 5 de abril, com 64 anos. A mãe, de 85 anos, sobreviveu.

“Minha mãe tinha o oxigênio. Não podíamos tirar dela para dar para meu marido”, disse Soliveri. “Mas eu teria feito isso.” Desde então, também ela começou a fazer terapia e tomar antidepressivos. Ela não para de mexer com a aliança de seu marido, que está usando em seu dedo médio.

O vírus pôs à prova a fé de algumas pessoas e fortaleceu a de outras. No caso de Soliveri, ela diz que perdeu a capacidade de orar.

Ao longo do verão, Raffaella Mezzetti, 48, voluntária da organização católica Caritas, disse que a igreja virou um bálsamo para os fiéis traumatizados. Mas revelou que ainda sente calafrios quando ouve os jingles dos anúncios que estavam passando na TV à época. As sirenes de ambulâncias a deixam nervosa.

Devido à crise médica, Giovanni Cagnoni demorou a procurar o hospital quando sofreu dores de estômago.

Quando foi examinado por médicos, descobriram que ele tinha um câncer raro, liposarcoma, concentrado na região dos rins. Quando foi marcada uma data para a cirurgia, em agosto, já havia metástase, e o câncer estava inoperável. “Os hospitais não estavam mais aceitando ninguém”, disse ele, falando em sua casa em Gazzaniga, sentado diante da lareira com suas duas filhas.

A família Cagnoni tem passado por um inferno. Ex-comandante da polícia militar, Cagnoni, 67, anotou todas as minúcias do que aconteceu em um caderno verde intitulado “Crônica da Covid-19”.

No dia 8 de março, sua esposa, Maddalena Peracchi, sentiu calafrios quando estava fazendo uma caminhada. Cagnoni anotou a temperatura dela ao longo dos 11 dias seguintes (37,4 graus, 36,5, 38). Em 19 de março sua condição se agravou tremendamente. Paramédicos usando trajes de proteção entraram na casa deles e a levaram embora.

No dia 20 de março, seu irmão telefonou para animá-los e “morreu naquela noite”.

No dia 29 de março, Cagnoni anotou o início do horário de verão e que os médicos haviam ligado para dizer que sua esposa estava à beira da morte. O dia 30 foi “interminável”, e ele não recebeu notícia alguma. No dia 31, ele telefonou ao hospital e foi informado que sua mulher morrera na noite anterior.

“Esqueceram de nos avisar”, diz o texto manuscrito em caneta azul. No dia 11 de abril, enquanto sua filha Monia se recuperava do vírus, Cagnoni anotou sua primeira dor abdominal em seu diário.

Tradução de Clara Allain

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