Descrição de chapéu refugiados

Para filósofa italiana, luta por direito a migração será tão dura quanto a contra a escravidão

No livro 'Estrangeiros Residentes', Donatella di Cesare questiona soberania de Estados-nações

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São Paulo

Para a filósofa italiana Donatella di Cesare, a luta pelo direito à migração é a questão de nosso século e será tão dura quanto a luta contra a escravidão. Uma filosofia da migração é o que ela se propõe a fazer no livro “Estrangeiros Residentes”, que sai agora no Brasil pela editora Âyiné (trad. Cezar Tridapalli, 370 págs., R$ 89,90).

Di Cesare é professora na Universidade Sapienza, em Roma. Estudiosa de Heidegger, foi aluna do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, e, defensora da vocação política da filosofia, participa ativamente do debate público na mídia italiana.

Em “Estrangeiros Residentes”, lançado em 2019, ela apresenta essa figura que dá nome ao livro, um sujeito com direito a migrar, mas também à hospitalidade, e questiona a soberania dos Estados-nações, assim como a propriedade da terra, cidadania, identidade e outros conceitos caros a um mundo no qual pessoas se movem enquanto países querem impedi-las.

Di Cesare falou à Folha sobre algumas das questões centrais de seu livro, sobre a pandemia e sobre os anos Donald Trump.

A filosofa italiana Donatella Di Cesare
A filosofa italiana Donatella Di Cesare - Andreu Adrover/CCCB

A senhora diz que a filosofia ainda não havia dado conta da questão da migração. Qual a importância do tema para a filosofia? O tema da migração ainda não havia encontrado espaço na filosofia, e o mesmo vale para a figura do migrante. Venho me questionando sobre essa figura como um fenômeno global, mas também no que significa um “jus migrandi” [direito de migrar como direito humano].

Tenho convicção de que o direito de migrar é o direito do século 21 e também o desafio do novo milênio, e que vai envolver uma luta tão árdua quanto a luta contra a escravidão. Migrar não é apenas mudar de lugar; não é um direito a escapar. É um direito à hospitalidade. Migrar é um ato político e existencial que implica encontro —ou confronto— com o outro.

A ordem Estado-cêntrica do mundo complica o migrar. Nesse sentido, migração também tem um valor subversivo. O que está acontecendo é uma guerra de Estados-nações contra migrantes. Aceitamos o Estado como se fosse um fato natural, e não é.

A migração é uma provocação, quase uma subversão, porque expõe a fundação violenta e artificial do Estado. Precisamente porque eu critico o princípio do Estado é que minha perspectiva é anárquica.

Como a pandemia mexe com a migração? No meu livro “Vírus Soberano?” [lançado em maio na Itália e publicado no Brasil pela Âyiné], escrevo que a pandemia é um divisor de águas, marca um antes e um depois na história. Não é como o 11 de Setembro, quando éramos espectadores. Agora somos vítimas potenciais. E não é como a crise econômica de 2008, porque é uma catástrofe extra-sistêmica e ainda não sabemos como o capital reagirá. Sabemos que a pandemia aguçou as desigualdades.

Na democracia imunitária há os protegidos, os resguardados, ou seja, os cidadãos de dentro, e há os expostos, aqueles sem proteção, os rejeitados, a escória do processo de globalização, que são retidos e largados para morrer em campos de refugiados. Nunca antes como nesta pandemia, quando a biopolítica virou imunopolítica, permitiu-se que humanidade supérflua morresse sem nenhum problema.

No livro, a senhora fala das imagens de sofrimento dos imigrantes, citando a foto do corpo de um menino sírio encontrado afogado numa praia. Como nos tornamos insensíveis a elas? Como cidadãos, somos, mesmo que inconscientemente, cúmplices dos Estados. Queremos ser protegidos, ter direitos. Então olhamos para o que acontece lá fora, para além das fronteiras, de uma perspectiva Estado-cêntrica. Assim, o que vem de fora parece a nós como inimigo, invasor. Também aplicamos critérios diferentes: lá, o sofrimento é um destino esperado, inevitável; aqui, qualquer padecimento deve ser mitigado, o menor distúrbio tem de ser eliminado. A anestesia é agora parte da história democrática.

A senhora fala sobre como o exílio leva a uma liberdade que vem da compreensão de que não há uma conexão natural com um lugar. Como os nacionalismos ofuscam esse fato? Temos que reconhecer que, no exílio planetário da globalização, somos todos estrangeiros residentes, essa figura é a protagonista do meu livro. O estrangeiro residente perturba a lógica de barreiras que garante a existência do autóctone, do cidadão. Viver não tem a ver com ter, mas com ser. E não significa radicar-se, estabelecer-se, fazer parte da terra.

É o estrangeiro residente que aponta o caminho, vivendo na ranhura da separação da terra.

Não é uma questão de democratizar a cidadania livrando-a da nação, mas de ir além da cidadania, o que também significa expor os limites do cosmopolitismo. No fim das contas, não é questão de se proclamar "cidadãos do mundo”, nem uma questão de extensão da “cidadania do mundo”, mas de ir além, para um lugar que se deve coabitar. Isso é o que importa: coabitar. Outra forma de entender a comunidade é possível.

Isso tem a ver com a crítica que a senhora faz das ideias de assimilação e de identidade. Quais os problemas dessas ideias? Reconhecer a precedência do outro no lugar onde se vive significa não apenas se abrir para uma ética da proximidade, mas também para uma política da coabitação. A atitude discriminatória reivindica aquele lugar exclusivamente para si. A pessoa que discrimina coloca a si mesma como um sujeito soberano que, alegando uma suposta identidade com aquele lugar, do qual fantasia fazer parte, reivindica os direitos de propriedade.

O sujeito soberano, seja ele um “eu” ou um “nós”, não é nada mais que um usurpador que pretende substituir o outro, enfraquecer o outro, apagar suas evidências. Como se o outro, que sempre o precedeu naquele lugar, não tivesse direitos e nem mesmo tivesse existido. Assim, junto com o outro, ele apaga toda a ética. Porque ninguém nunca foi o escolhido, e na terra só temporariamente se está onde outro já viveu antes, um lugar do qual não se pode reivindicar a posse.

A implicação do "co" na coabitação deve ser entendida em seu senso mais amplo e profundo. Num mundo atravessado por tantos exílios, coabitar significa compartilhar proximidade espacial numa convergência temporal na qual o passado de cada um pode ser articulado num presente comum com vista a um futuro comum.

Trump assumiu logo após a crise migratória de 2015, como a senhora avalia seu mandato? Trump é o expoente “par excellence” dos defensores da soberania, ou seja, daqueles que defendem a soberania como uma reação à globalização. Nós sabemos bem que vivemos num mundo globalizado, marcado, por exemplo, pela migração. Não é questão, portanto, de fomentar o ódio de ditos nativos contra migrantes.

Também sabemos que as fronteiras nunca estão realmente fechadas. O mecanismo da migração sempre funciona: para que seja mais bem explorada, a força de trabalho necessária tem passagem livre.

Trump fez as pessoas acreditarem que ele fecharia as fronteiras. Na verdade, a sua política de ódio apenas fez mal aos mais fracos, às mulheres, às crianças trancadas em gaiolas. Essas imagens não podem ser esquecidas.

Trump se apresentou como o salvador da América. Como Bolsonaro, ele negou a pandemia. Ele usou a mesma demagogia usada contra migrantes, a do nós contra ele. Ele seria o que cura, o que limparia o corpo da nação de negros criminosos, imigrantes mexicanos, feministas e transgêneros, doentes e deficientes, o que defenderia a nação de toda ameaça interna e todo perigo vindo de fora.


raio-x

Donatella Di Cesare, 64

Filósofa e professora na Universidade de Roma La Sapienza, é autora de "Terror e Modernidade" e "Estrangeiros Residentes" e colaboradora de jornais como Il Corriere della Sera (Itália) e Die Zeit (Alemanha)

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