Cotado para substituir Ernesto surpreendeu com defesa explícita do bolsonarismo

Luís Fernando Serra, embaixador na França, ecoou discurso de que europeus têm interesses escusos na Amazônia

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BAURU (SP) e Bruxelas

Após a queda de Ernesto Araújo, que deixou o Ministério das Relações Exteriores nesta segunda-feira (29), o nome de Luís Fernando Serra, embaixador do Brasil na França, passou a circular como uma das opções de Jair Bolsonaro para assumir a pasta responsável pela política externa do país.

Apoiado pelos filhos do presidente, Serra já é apontado por parlamentares brasileiros como um possível substituto "igual ou pior" que Ernesto. Entre as críticas à sua postura, está o fato de que ele, assim como o ex-chanceler, também pode acabar se revelando um membro da ala ideológica do governo Bolsonaro.

Ao longo de quase 50 anos de carreira, Serra, 71, teve passagens por postos diplomáticos em países como Chile, Tunísia, Rússia e Alemanha. Também foi embaixador em Gana, Singapura e Coreia do Sul.

O diplomata Luís Fernando Serra durante sabatina na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional
O diplomata Luís Fernando Serra durante sabatina na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional - Marcos Oliveira/Agência Senado

Foi em Seul, em fevereiro de 2018, aliás, que Serra teria caído nas graças da família Bolsonaro ao receber o então pré-candidato à Presidência do Brasil durante uma série de visitas a países asiáticos.

Segundo quatro diplomatas brasileiros ouvidos pela Folha sob condição de anonimato, Eduardo, o filho 03 de Bolsonaro, que acompanhava o pai na turnê pré-eleitoral, passou a considerar Serra um nome confiável.

Pouco mais de um ano depois, após a eleição de Bolsonaro, Serra foi indicado pelo presidente para assumir a embaixada do Brasil em Paris. À época, ele já era cotado para comandar o Itamaraty, mas o cargo foi dado a Ernesto. Sabatinado pela Comissão de Relações Exteriores do Senado, Serra foi aprovado ao posto pelo plenário da Casa com 62 votos favoráveis, 1 contrário e 2 abstenções.

Uma vez em Paris, Serra destoou de outros embaixadores na Europa e de sua própria carreira prévia, mais afeita à diplomacia comercial, ao assumir publicamente a defesa do governo Bolsonaro e o ataque a inimigos políticos do bolsonarismo —em especial o ex-presidente Lula e o PT.

A atitude, descrita por um colega como um ato de "lavar roupa suja fora de casa", é incomum entre diplomatas experientes. Segundo os relatos, a postura pode ser lida como um posicionamento ideológico do embaixador, mas, "caso ele substitua Ernesto, não será simplesmente trocar seis por meia dúzia".

Os diplomatas afirmam ainda que também não se deve esperar que, no comando do Itamaraty, Serra seja uma barreira de contenção à política externa do presidente e seu filho 03. A avaliação, porém, é que, ao menos por enquanto, ele prefere não deixar o posto em Paris e estaria procurando alternativas na Europa para quando seu tempo no posto diplomático na capital francesa se encerrar.

Em agosto de 2019, pouco depois de assumir a embaixada em Paris, Serra se viu em meio a uma escalada retórica que evoluiu para crise diplomática entre Bolsonaro e o presidente da França, Emmanuel Macron.

Criticando a gestão de meio ambiente do líder brasileiro devido à grande quantidade de incêndios na Amazônia naquele ano, o mandatário francês acusou o brasileiro de mentir ao assumir compromissos em termos de políticas ambientais na cúpula do G20 ocorrida dois meses antes.

Bolsonaro reagiu acusando Macron de tentar potencializar o ódio contra o Brasil e endossou comentários ofensivos contra a primeira-dama francesa, Brigitte Macron, insinuando que as críticas do presidente francês seriam motivadas por inveja de Michele Bolsonaro.

Em entrevista à Folha, Serra afirmou que "houve excessos de parte a parte" e defendeu que os dois países virassem a página e mantivessem sua parceria estratégica. O embaixador, entretanto, ecoou o discurso de Bolsonaro segundo o qual países europeus, especialmente a França, têm interesses escusos na Amazônia, e não uma legítima preocupação ambiental. "Dá para desconfiar que há uma agenda escondida quando você vê 300 ONGs na Amazônia e zero no Nordeste. Uma de duas: ou há agenda escondida ou preconceito com os nordestinos. Escolham uma", disse Serra.

Os números citados pelo embaixador, no entanto, eram incorretos. Levantamento do Ipea contabilizava, à época, mais de 205 mil ONGs no Nordeste, enquanto os estados que compõem a Amazônia brasileira somavam aproximadamente 106 mil. À semelhança do presidente, Serra também repetiu acusações de que a imprensa estaria mais focada em dar espaço a críticas do que esteve em governos anteriores.

“Preciso dizer uma coisa muito importante: em 2005 aconteceu a mesma coisa, aliás, pior. Você pode ir aos arquivos para ver, mas o presidente era Lula, queridinho da imprensa, então ninguém saiu espalhando o que estava ocorrendo na floresta. Ninguém disse que era culpa do Lula”, afirmou o embaixador, em entrevista à emissora de TV France 24, em 2019.

Serra também se envolveu em polêmicas sobre Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio de Janeiro, cuja morte teve repercussão mundial. Em fevereiro do ano passado, a senadora francesa Laurence Cohen, do Partido Comunista, e a deputada Christine Pirès, do Partido Socialista, enviaram uma carta à embaixada brasileira em Paris pedindo esclarecimentos sobre o assassinato da vereadora, que permanece sem solução mais de 1.100 dias depois.

Em resposta, o embaixador manifestou “profunda indignação por tratamentos tão díspares em relação a casos” similares no Brasil, em especial o assassinato de Celso Daniel, então prefeito de Santo André, em 2002, e a facada da qual Bolsonaro foi alvo em 2018. “Lembro-lhe que os mandantes da tentativa de assassinato de Jair Bolsonaro, durante sua campanha eleitoral, também não foram identificados, ainda que o autor do crime tenha sido preso e colocado em uma instituição psiquiátrica. Este ato é, na minha opinião, tão sério quanto os outros crimes políticos mencionados aqui", escreveu Serra.

No mesmo ano, o embaixador cancelou sua participação em um evento em Paris depois de ser informado que a prefeita Anne Hidalgo prestaria uma homenagem a Marielle Franco.

Em outro caso notório, Serra enviou uma carta ao jornal francês Le Monde para reagir a um editorial que acusava Bolsonaro de ignorar a gravidade da pandemia de coronavírus. "Não há dúvida de que há algo podre no reino do Brasil, onde o presidente Jair Bolsonaro pode afirmar sem se preocupar que o coronavírus é uma 'gripezinha' ou uma 'histeria' nascida da 'imaginação' da imprensa", dizia a publicação.

Ao defender o presidente, o embaixador afirmou que o conteúdo do editorial era "profundamente ofensivo" e que as ações de Bolsonaro mostravam que, desde o início da crise sanitária, seu intuito era o de "evitar que a histeria e o pânico dominassem a população". Dias depois, o prédio da embaixada brasileira em Paris foi alvo de uma intervenção artística com bandeiras pretas, cruzes e a frase "e daí?" dita por Bolsonaro ao ser questionado sobre o crescente número de óbitos decorrentes da Covid-19 no Brasil.

Além de Serra, outros dois nomes são citados como favoritos para substituir Ernesto: a cônsul-geral do Brasil em Nova York, Maria Farani Azevêdo, e o secretário de Assuntos Estratégicos, almirante Flavio Rocha. O militar, apesar de não ser servidor de carreira do Itamaraty, fala cinco línguas e é conhecido pelo perfil moderado. Já Farani tem o apoio de congressistas alinhados a Bolsonaro, mas enfrenta resistência no núcleo ideológico por ter sido chefe de gabinete do ex-ministro Celso Amorim, no governo petista.

Nas últimas horas, assessores palacianos têm enviado mensagens com imagens de Farani ao lado de políticos de esquerda e lembrado que, antes de assumir o cargo de presidente, Bolsonaro chegou a dizer em uma entrevista que não pretendia nomeá-la.

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