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Guilherme Casarões

Bolsonaro deveria seguir exemplo de Collor na área ambiental

Ex-presidente tomou dianteira na demarcação de terras indígenas, aderiu a tratados internacionais de direitos humanos e sediou Rio-92

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Guilherme Casarões

Cientista político e professor da FGV-EAESP

Jair Bolsonaro está diante do maior desafio de política externa em seus quase 30 meses de mandato. A Cúpula do Clima, que reunirá 40 líderes mundiais sob os auspícios do novo presidente americano, Joe Biden, será um teste de fogo à capacidade do governo brasileiro em assumir compromissos internacionais e demonstrar confiança e planejamento de longo prazo.

A administração Biden vem tratando as mudanças climáticas como prioridade absoluta. Não há nada mais forte na retórica americana que enquadrar um tema como questão de segurança nacional. Desde a campanha presidencial, o democrata deu mostras de que, nesse campo, percebe a política ambiental brasileira como ameaça real ao bem-estar de seus cidadãos.

O presidente Jair Bolsonaro, à dir., ao lado do ex-presidente Fernando Collor durante evento no Palácio do Planalto
O presidente Jair Bolsonaro, à dir., ao lado do ex-presidente Fernando Collor durante evento no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 8.fev.21/Folhapress

Agora, Bolsonaro não poderá piscar. Seu governo passou dois anos brincando de política externa, inventando conceitos fantasmagóricos e disseminando teorias da conspiração em redes sociais, inclusive como forma de se eximir da responsabilidade sobre a devastação da Amazônia. Mas na mesa dos adultos, compartilhada por Xi Jinping, Angela Merkel e Emmanuel Macron, o presidente brasileiro —que já os hostilizou— será forçado a segurar as bravatas e negociar.

Limpar a péssima imagem internacional do Brasil será difícil, mas não impossível. Temos um precedente interessante e que, curiosamente, ocorreu sob o único presidente vivo que Bolsonaro parece respeitar: Fernando Collor de Mello. Quando assumiu o governo, em março de 1990, o então novo presidente tinha diante de si dois desafios. A hiperinflação, cuja bala de prata —o confisco das poupanças— saiu pela culatra, traumatizando gerações de brasileiros, e a recuperação da credibilidade do país. Nesse quesito, o desempenho de Collor foi surpreendentemente positivo, mas exigiu dele boa dose de criatividade.

Ao fim da "década perdida", justo quando ocorreram as primeiras eleições pós-ditadura, o Brasil estava muito próximo de ser considerado pária internacional. Éramos vistos como delinquentes econômicos, graças ao calote da dívida externa e a quase uma década de reserva de mercado na área de informática.

Para piorar, recebemos a pecha de vândalos humanitários, com um governo frequentemente acusado de fazer vistas grossas a violações dos direitos dos povos indígenas e à violência contra ambientalistas.

O ativismo do cacique Raoni e o trágico assassinato de Chico Mendes tornaram-se símbolos de resistência de um país à deriva. Ao redor do Ocidente, vozes como a do jovem senador democrata Al Gore e do presidente socialista francês François Mitterrand evocavam um suposto "direito de ingerência", conceito polêmico do direito internacional, para intervir na gestão amazônica em nome da humanidade.

Collor entendeu, desde a campanha, que só conseguiria fazer reformas relevantes se contasse com a boa vontade internacional. Amparado pela jovem e progressista Constituição de 1988 e peitando os interesses retrógrados das Forças Armadas, investiu na recuperação da imagem do país com gestos simbólicos e fortes: jogou uma pá de cal (literal) sobre o poço de testes nucleares da época da ditadura, tomou a dianteira na demarcação de terras indígenas, aderiu a tratados internacionais de direitos humanos e recebeu como presidente, pela primeira vez, o diretor de uma ONG internacional, a World Wildlife Fund.

Num governo sem partidos, Collor entregou a pasta do Meio Ambiente para o conhecido ambientalista José Lutzenberger. Burocratas, diplomatas e políticos mobilizaram-se para a realização do mais ambicioso encontro ambiental da história, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92.

Aos olhos da comunidade internacional, o Brasil deixava a condição de pária para assumir protagonismo na novíssima agenda ecológica. À frente de mais de uma centena de líderes mundiais, Collor sediou o evento que pautou todo o debate ambiental das décadas seguintes, consolidando conceitos como desenvolvimento sustentável, direito ao desenvolvimento e mudanças climáticas.

De lá para cá, outros presidentes compreenderam a importância da liderança brasileira na agenda ambiental. Sob Fernando Henrique Cardoso, o Brasil tomou a dianteira das negociações do Protocolo de Kyoto. Lula aprovou o bem-sucedido Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, responsável pela redução em 83% do desmatamento da região entre 2004 e 2012, além da Política Nacional sobre Mudança do Clima. Nessa mesma esteira, apesar de polêmicas envolvendo Belo Monte, compromissos ambientais foram seguidos durante o governo Dilma, que realizou a Rio+20 e assegurou adesão brasileira ao Acordo de Paris.

Com variações de ênfase e estilo, mandatários da Nova República fizeram do Brasil potência ambiental. Esse tem sido, há três décadas, um dos principais ativos da reputação internacional brasileira.

A Cúpula do Clima de Biden será a oportunidade para o Brasil reaver, ao menos em parte, a credibilidade queimada. O maior desafio de Bolsonaro é mostrar ao mundo que adotará metas ambientais verdadeiramente ambiciosas, ouvindo a ciência e a sociedade civil, e não somente seus assessores da ala predatória dos militares e dos ruralistas.

Uma dose da criatividade midiática e dos compromissos políticos de Collor não lhe fará mal. Só ficará ainda melhor se o presidente tiver a grandeza de substituir o pirotécnico Ricardo Salles por um ministro notável. Nestes tempos estranhos, basta ser alguém que aceite o consenso científico climático, aprecie árvores em pé e não esteja disposto a cobrar resgate por elas.

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